Quem deve acionar a lei?

2 de abril de 2019 § 9 Comentários

Artigo para O Estado de S. Paulo de 2/4/2019

Entre a impunidade completa dos assaltantes do estado e a total ausência de defesas contra as prisões “preventivas” sem que haja nada a prevenir; entre a omissão cúmplice e a hiperatividade jurídico-policialesca; entre o “garantismo” de uns e o “ativismo” de outros, o Brasil Real segue paralisado pelos movimentos pendulares a que tem sido empurrado pelos grupos da privilegiatura em disputa pelo poder sem que tenhamos avançado um centímetro sequer nas reformas institucionais mapeadas desde Montesquieu para por o povo no poder e cada um dos três poderes no seu devido lugar e oferecer um terreno minimamente sólido para a retomada do desenvolvimento econômico.

Uma série de ondas entrecruzadas explicam a progressiva perda de racionalidade do processo brasileiro.

O terrorismo internacional fez avançar as tecnologias de rastreamento de dinheiro e as polícias brasileiras, de carona no processo, pediram e obtiveram de políticos que sempre se imaginaram intangíveis, a aprovação de leis mais fortes contra o crime organizado que, além da curva, permitiram a um grupo divergente do padrão do Judiciário brasileiro montar quase por acidente a Operação Lava Jato que quebrou a impunidade ancestral também do crime organizado de colarinho branco.

Esse processo, excepcional e isolado, correu totalmente à margem do longo trabalho de aparelhamento do Judiciário, em especial pelo rebaixamento dos critérios de escolha de juizes do Supremo Tribunal Federal, que vinha avançavando ao longo de toda a “Era PT” como preparativo para o modelo bolivariano de golpe em que o Judiciário aliado ao Executivo avança sobre o Legislativo até anular completamente qualquer instância de poder eleito pelo povo. A Lava Jato provocou, no entanto, um efeito devastador no projeto de poder do lulismo. Mas, na sequência, progressivamente instrumentalizada pela luta política, acabou por triturar um Poder Lesgislativo encurralado pela tática de resistência do lulismo que consistiu em igualar o país inteiro pelo seu padrão de conduta para isentar-se de culpa. “Eu sou, mas quem não é”?

A identificação entre o crime de corrupção eleitoral e o desvio de conduta do “caixa 2” foi o golpe que fechou a porta a uma reconstrução do país por dentro da política e precipitou uma luta surda pelo poder de que a cruzada contra a corrupção tornou-se mera caudatária. A crise da imprensa – traduzida no nesfasto “jornalismo de acesso” a dossies produzidos pelas partes em luta – e a polarização ideológica precipitada pelo condicionamento pavloviano contra qualquer possibilidade de aprofundamento dos raciocínios políticos nas redes sociais, completaram o desastre.

Hoje a torcida, tanto mais cega quanto mais barulhenta, divide-se apaixonadamente entre os que nos roubam com a lei institucionalizando privilégios que atribuem a si mesmos – estes tidos em muy alta conta – e os que nos roubam também contra a lei ou nos interstícios da lei dependendo de se fazem isso declarando-se “de esquerda” ou declarando-se “de direita”. Mas apesar de permanecerem mais fechadas do que nunca antes as portas da política a qualquer pessoa estranha às corporações que ordenham o estado e do vertiginoso aumento do numero de representantes eleitos oriundos do Poder Judiciário, do Ministério Público e das polícias que saltaram para a seara da política, ninguém se lembra de perguntar porque, à Lava-Jato, é vedado investigar o Poder Judiciário? Porque é interditado ao Ministério Público propor delações premiadas contra juristas? Porque um advogado propor a seu cliente que inclua um juiz na sua delação premiada equivale a condenar-se a nunca mais ganhar uma causa num tribunal brasileiro? Porque essas mesmas corporações são as que detêm os mais altos privilégios dessa privilegiatura que esgotou até à ultima gota – 97% após o ultimo golpe na semana passada – o orçamento público do país que cobra os impostos proporcionalmente mais altos do mundo?

E no entanto o tema é velho como a humanidade. “Para os amigos, tudo. Para os inimigos, a lei”. É ela o mais formidável de todos os “argumentos”. Conta com o monopólio da força para encerrar carreiras, matar biografias, cassar liberdades, confiscar bens e até tomar a vida de quem ousar enfrentá-la. Daí ser a questão central de toda a luta da humanidade contra a opressão garantir que a lei seja posta exclusivamente a serviço da justiça e não, como sempre foi desde tempos imemoriais, um mero instrumento a serviço do poder.

Todo poder emana do povo e em seu nome será exercido” é o resumo da resposta. O que remete às quatro questões subsequentes. 1) Como garantir um sistema de representação que seja efetivamente representativo? Com eleições distritais puras, as únicas que permitem saber exatamente quem é cada um dos representados de cada representante. 2) Como garantir que a lealdade dos representantes não se desvie dos seus representados? Condicionando a continuação do seu mandato ao julgamento de cada um dos seus atos por esses representados. 3) Como impedir que os representantes fiquem expostos ao uso da lei contra eles (e seus representados) em função da luta política e não do interesse da justiça? Dando-lhes imunidade contra determinadas leis enquanto o seu representado sustentar o seu mandato o que, na prática, tira da mão de todos os outros agentes públicos a decisão de acionar a lei contra eles. Isso deixa a decisão de acionar ou não a lei contra o ladrão de dinheiro público exclusivamente aos roubados e não aos concorrentes ou aos adversários do ladrão na disputa política ou por “territórios privativos de caça”. 4) Como conseguir, finalmente, que tudo isso chegue a bom termo em tempo hábil e com penas compativeis com os crimes cometidos? Dando aos eleitores os poderes de propor leis que os legisladores ficam obrigados a processar, recusar leis “tortas” vindas dos legislativos e fazer eleições periódicas de confirmação dos bons juizes e exclusão dos maus.

Não existe terceira via. Vai bem no mundo quem vive num sistema assim. O resto vai à brasileira…

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§ 9 Respostas para Quem deve acionar a lei?

  • Jose Simoes Neto disse:

    Eleições municipais virão já em 2020. Oportunidade para iniciar distrital puro, com recall para cargos eletivos e cargos por estes nomeados e plebiscito legislativo.

    Vamos avançar já.

    A cidade que aceitar isso, carreará investimentos para si e alavancará o desenvolvimento de seu povo.

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  • RUBI GERMANO RODRIGUES disse:

    Realmente, sem justiça confiável, nenhuma organização social resulta possível. Em termos de justiça, a perda da confiança da população já deveria ser motivo suficiente para destituir o juiz.

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    • Fernão disse:

      Sem duvida.
      Nas eleições de retenção de juízes não se pergunta os porquês.
      O juiz cai porque perde a confiança do povo.
      E o mesmo acontece nos processos de recall contra qualquer outro funcionário eleito (nos EUA todos os encarregados de fiscalizar o governo ou prestar serviços diretos ao publico). Não é preciso anunciar um motivo.

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  • Tereza Sayeg disse:

    Dá um desânimo… Mais uma vez o Congresso está se lixando para o Brasil e para os brasileiros.

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  • Eduardo disse:

    Caro, vou continuar repetindo à tua moda de água-mole-em-pedra-dura: precisamos (nós, os mortais, o Povo) de tua persistência, de tua pregação no deserto, de teus estudos, reflexões, conclusões e propostas. Mas precisamos também de tua presença, seja real ou virtual, maciça, massiva ou o que for necessário. Você está cada vez mais articulado e didático, tem conteúdo, tem história onde outros têm apenas estórias, então… o que falta para vê-lo soltar teu freio e avançar pela pista? Sabemos que a tal pista é esburacada, vai te fazer alçar voo sem muita segurança, mas… pensemos nós — o Povo: nada temos a perder. Toda lucidez e honestidade intelectual nos é bem-vinda. Tua visão, Fernão, precisa ser disseminada, traduzida, encampada, amplificada e capaz de florescer entre muito mais pessoas, atingindo e convencendo os protocidadãos deste país. Não é trabalho para menos de dez ou quinze anos, creio eu. Mas quanto antes você se projetar mais, se expor, debater (sim, claro) e defender tais ideias (nas quais acredito), mais cedo nós, os mortais, poderemos vislumbrar alguma dignidade (antes de um fim, ao passo atual, meramente inglório). Você tem meu apoio moral. Decerto tem o de tantos outros brasileiros. Se você quiser e puder, faça. Por você, por nós. Se você precisa de mais para fazer, “peça, e lhe será dado”! Abraço.

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  • whataboy disse:

    Fernão, o tamanho da indiferença geral para sua pregação é o que mais me assusta.
    Tem um deserto na frente da sua visão sobre a essência da democracia. Leio sempre seus artigos, me convenço completamente da solução que você propõe, mas em seguida me desespero porque não sei onde está o caminho que leva a esse novo design de uma nação. O Congresso renovou 50%, mas onde estão as forças que poderiam renovar completamente a representação que combate as distorções que conhecemos desde sempre?
    Por que não te vemos nos debates com os “especialistas”?
    Onde posso te apoiar?

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  • Adriana disse:

    A situação anda desanimadora. A justiça nem terá lava toga, e o motivo não é a ausência de problemas, mas sim o desejo dos poderosos de que haja impunidade.
    O povo, pagador de impostos, é desprezado. Falta a razão de existir do Estado Brasil. Sem indústrias, sem emprego, sem serviços públicos, sem segurança, sem sossego.
    Agora temos um clã, para quem votei também, fazendo loucuras de deixar todos perplexos.
    A crença em um país mais democrático vai se esvaindo…

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  • Carlos AF disse:

    Fernão, jamais desista.
    Jamais se canse de escrever sobre a captura do Erário pelas corporações de servidores(?) públicos(?) dos 3 poderes e do Ministério Público. É isto, de longe, o maior mal do Brasil.

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