É só largar mão de ser burro

5 de fevereiro de 2019 § 27 Comentários

Artigo para O Estado de S. Paulo de 5/2/2019

É temporada de chororô. Sempre que colhemos o que plantamos abre-se mais uma temporada de chororô. Longos editoriais, comentaristas e autoridades com ar compungido entremeando lamúrias com arrancos de “indignação”…

É tudo falso menos a dor!

Não há surpresa alguma. Não há quem não estivesse esperando por mais essa. Nós somos o país das reprises. Pelo lado da responsabilidade do estado a tragédia de Brumadinho é o de sempre: o poder político sem nenhum tipo de freio. Pelo da Vale, bis: o poder econômico sem nenhum tipo de freio.

O que é esse mar de misérias num país rico como o Brasil senão os governantes e “servidores públicos” escrevendo suas próprias leis sem nenhum controle ou sanção, à salvo dos mares de lama que põem para rolar e livres para empanturrar de benesses a sua ganância? Pagamos os maiores impostos do mundo e falta tudo. Nada mata mais que tsunami de privilégios…

E o que são essas barragens da morte anunciada numa empresa com os números da Vale senão os “governantes corporativos” escrevendo suas próprias leis sem nenhum controle ou sanção, à salvo dos mares de lama que põem para rolar, livres para empanturrar de “bônus” a sua cupidez?

“Barragens de alteamento a montante” é o pior método de contenção de rejeitos, proibido em toda parte porque é certo que uma hora estoura como estourou Mariana. Quem não sabia? Mas é o que convém a quem colhe bônus “cortando custos” custe o que custar pros outros. E taí Brumadinho debaixo da lama.

Regimes de repartição na previdência combinados com privilégios ilimitados para as corporações estatais é o pior método de financiamento da previdência, proibido em toda parte porque é certo que uma hora estoura. Quem não sabia? Mas é o que convém a quem come como leão e contribui como passarinho. E taí o Brasil inteiro enterrado na lama.

Mas haverá chororô sobre tudo menos o que interessa: “É preciso políticos mais honestos”. “É preciso empresários menos gananciosos”. Mas a democracia teve de ser inventada precisamente porque não somos, deus do céu! Porque provamos e comprovamos ha milênios que não seremos nunca!

No tempo em que vivíamos dos dentes caninos que ainda temos na boca só sobrevivia quem os usasse sem qualquer hesitação. Hoje não precisamos mais disso mas o relógio de Darwin tem lá a sua velocidade. Aberto o caminho para a negociação política e para uma economia com regras, continuamos sendo capazes de resistir à nossa própria natureza se e somente se, em vez da recompensa de sempre, impusermos como certa a morte política e econômica a quem violar as novas regras pactuadas pela civilização. É preciso enganar o nosso instinto de sobrevivência programado para morder que prevalece sempre. Reprogramá-lo na infalibilidade da punição, coisa que só pode ser garantida se o gatilho que a desencadeia estiver nas mãos das vítimas e não nas dos autores de todo abuso de poder político e de todo abuso de poder econômico: sua majestade, o povo, o único lado insubornável (pelo menos não em segredo) dessas disputas entre grossos interesses escusos.

Mas o que é o próprio governo, senão a maior das críticas à natureza humana? Se os homens fossem anjos, não seria necessário governo algum. E se os homens fossem governados por anjos, o governo não precisaria de controles externos nem internos”, grita-nos James Madison lá de 1787…

Não gosta de americano? Foi condicionado desde filhote a desligar o cérebro e ligar o fígado sempre que ouvir falar neles? Jurou aos “companheiros” não adotar nada do que venha deles exceto a penicilina e o computador?

Seus problemas acabaram!

Essa invenção não é deles. Eles copiaram dos suíços, o único povo europeu que nunca teve rei, o sistema de controle absoluto do aparato institucional de decisões pelo eleitor e não pela “otoridade” em cujas mãos tudo acaba virando comércio. E foram, por sua vez, copiados por todos os libertados da servidão e da miséria nos quatro quadrantes do planeta. O argumento indiscutível tem sido o do resultado. Funciona pra todo mundo, não importa a cultura, não importa a latitude. É só largar mão de ser burro. Tome a si mesmo como parâmetro. Você trabalha todo dia e faz aquele sacrifício todo pelo engrandecimento da sua alma imortal ou porque você tem um patrão e se não trabalhar direito e a favor da empresa vai pra rua e não come mais? Então! Político e funcionário encarregado de fiscalizar empresário é a mesma coisa. Bota patrão neles! Manda meia dúzia pra rua amanhã, sem “afastamento” nem aposentadoria antecipada, e vê lá se não muda tudo daí pra frente!

Essa nossa servidão é voluntária. 16,38% passa em três minutos. Segurança de barragem não passa nem em três anos, morra quem morrer. Mas nós insistimos. Exigimos dos marajás que nos sugam e dos juizes que não julgam, esses que vivem nos dando provas da sua “sabedoria” e da sua “ilustração”, que regulamentem e travem tudo ainda mais, que nomeiem mais fiscais achacadores, que baixem mais leis para enquadrar o povo e não para enquadrar o governo porque o “povo ignorante” é que é o perigo, não sabe nem o que é bom pra ele, foi-nos ensinado.

A impunidade é uma cadeia que começa (e só pode ser interrompida) com a imputabilidade do primeiro elo. Quanto mais instável for o emprego deles todos mais estável será o país e a obra do seu povo. E vice-versa o contrário. Republica é representação. Nelas é o povo que faz a lei e os governos é que obedecem. Mas a brasileira está solta no ar. Existe só para si mesma. Não enraiza no país real. Não é o eleitor que manda nela. Todas as hierarquias estão invertidas.

Das violências impunes à roubalheira generalizada nada vai mudar enquanto o gatilho de todas as armas – as institucionais, não as que matam só uma pessoa por vez – não estiverem nas mãos do povo. Retomada de mandatos, leis de inciativa popular, veto popular às leis dos legislativos, eleição de retenção de juizes. Ponha-se o povo mandando e veremos todo mundo jogar para o time.

Fora daí é a lama.

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§ 27 Respostas para É só largar mão de ser burro

  • Gláucia Telles Sales disse:

    Um dos artigos que mais me doeu.

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  • marcos andrade moraes disse:

    Mas vc votou no criacionismo e nas castas estatais. Vc votou nuns caras que em momento algum defenderam as reformas políticas que atenderiam seu reclame geral. Quem foi burro?

    MAM

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  • marcos andrade moraes disse:

    A propósito, está gostando do Vélez? MAM

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  • A. disse:

    Sou curioso a respeito das motivações do ser humano. E fico me perguntando o que leva um cidadão a frequentar regularmente este espaço apenas para criticar. É pessoal? É índole? É catarse às custas alheias? Se eu não gostasse do que o Fernão escreve eu simplesmente abandonaria o blog e iria procurar “minha turma”! Mas nem me atrevo a dar esse tipo de conselho…

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  • Dênio disse:

    Irretocável o artigo

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  • Fernando Lencioni disse:

    Parabéns mais uma vez Fernão. Desabafou por mim. Me senti aliviado.

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  • Olavo Leal disse:

    Caro Fernão: brilhante artigo, pondo o dedo na ferida, como sempre.
    Então, penso eu: não seria o momento certo – início de legislatura, com boa renovação em ambas as casas – de tratarmos sobre o COMO implantar as alterações pelas quais muito ansiamos?
    Assim, sugiro que você apresente, em artigo, uma ideia sobre o “como implantar”. Certamente haverá uma chuva de comentários: a favor, a favor com ressalvas, com muitas ressalvas, acho isso ou aquilo, penso um pouco diferente etc.
    Daí, poderemos centralizar mais esse objetivo, partindo para uma divulgação em massa – a começar deste que sugere.
    Abs

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    • Rubens disse:

      Olavo eis aí sua resposta : Proposta de PEC
      Sugere ao Poder Executivo a apresentação de Proposta de Emenda à Constituição que modifica os arts. 14, 49 e 96, da Constituição Federal, para instituir a revogação de mandato eletivo, mediante referendo de iniciativa popular.
      INC 19/2019
      https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2191178

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      • Olavo Leal disse:

        Grato, Rubens. Vou aprofundar.
        De qualquer forma,acho que um trabalho de massa, a partir deste “nosso” ambiente, seria excelente, visando concentrar esforços.
        Vale lembrar tb que eu luto, em paralelo, pela verdadeira federalização política e tributária do País, a que nosso atual governo se refere, creio eu, como “Mais Brasil, menos Brasília”.
        Abs

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      • flm disse:

        o federalismo, especialmente o tributário, é o maior dos checks and balances do sistema deles

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  • Alexandre Souza disse:

    Realmente, quanta sabedoria naqueles Fouding Fathers! (Século 18!!) Essa do James Madison é um primor!

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  • Enquanto não adotarem a doutrina do “domínio do fato” sobre a Vale novos Brumadinhos ocorrerão.

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  • JUREMA M PIMENTA disse:

    Perfeito

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  • Rubens Vidigal Filho disse:

    Fernão, como você mesmo disse quem semeia colhe.
    Veja a proposta de “Recall” do deputado Federal Luiz Phillipe de Orleans e Bragança do PSL
    Proposta de PEC
    Sugere ao Poder Executivo a apresentação de Proposta de Emenda à Constituição que modifica os arts. 14, 49 e 96, da Constituição Federal, para instituir a revogação de mandato eletivo, mediante referendo de iniciativa popular.
    INC 19/2019
    https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2191178
    avalie a proposta e no informe sua opinião.
    Um abraço

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  • Flm disse:

    Se a democracia é “representativa”, a questão central é a fidelidade da representação na ida e na volta. Partir para a criação de plebiscitos sobre legisladores eleitos pelo sistema proporcional transforma o país numa guerra de todos contra todos em que torna-se possível a qualquer grupo cassar mandatos de pessoas que ele não elegeu.
    A ordem dos fatores é fundamental. Primeiro o voto distrital para que eleitores e eleitos fiquem sabendo exatamente quem elegeu quem. O eleitor pode e deve, então, ter o direito de retomar o mandato DO SEU representante, mas jamais dos representantes dos outros.

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    • flm disse:

      o modo de fazer não escapará também da sequencia que ocorreu la nos EUA. Primeiro uma única cidade (Los Angeles), depois a contaminando de mais municípios, estados e assim por diante.
      como aqui tudo é fechado em pacotes eu elegeria como primeiro objetivo estabelecer o sistema só no âmbito municipal.
      la foi feíssimo também o movimento National Municipal League, com funcionamento muito parecido com os grupos que sugiram por aqui só que com mais organização de pesquisa, estudos legislativos e etc. Basicamente um movimento de em,precários municipais que foram montando uma rede de cidade em cidade para pressionar, organizar manifestações e etc.
      como ja tenho dito mil vezes, aqui será conseguido o que a rua conseguir. e ela ja provou que consegue até “o impossível” como parecia ser derrubar um governo do pt.

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  • Mora disse:

    Perfeito. Num prédio de 22 apartamentos onde 2 ou 3 mandam e desmandam sob a indiferença dos demais que fazem questão de se manterem alienados, o que dirá a mobilização da consciência de 209 milhões para um objetivo comum? Mais 200 anos ?

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  • Herbert Sílvio Augusto Pinho Halbsgut disse:

    Mais uma vez o senhor Fernão apresenta uma nova ferroada intelectual, que incomoda e provoca reações daqueles que gostam de participar da reconstrução do Brasil demolido por políticos “fake” e seus governos “fake” para pseudo cidadãos, que ainda não despertaram, mas um dia isto ocorrerá através do sistema de voto distrital. Cabe aos mais esclarecidos perseverar até que a onda cresça e empurre para a Terra do Nunca toda essa canalha da privilegiatura. Se alguns aqui fazem comentários até ácidos é sinal que foram incomodados e é até bom para sabermos o que vai na cabeça de outros. Afinal, VESPEIRO serve, a meu ver, também para incluir e educar através do debate. Para finalizar, as” barragens da morte anunciada” são “burragens” consentidas sob vistas grossas de muitas instituições públicas regulamentadoras, não preciso nem citar quais e quantas são, há décadas!

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  • flm disse:

    quem mexe em vespeiro tem de estar disposto também às ferroadas…

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    • Herbert Sílvio Augusto Pinho Halbsgut disse:

      Veio-me à lembrança a peça intitulada “O milagre de Anne Sullivan”, onde a super paciente professora educou uma jovem cega, surda e muda, que de início era um verdadeiro bicho que dava tapas e mordia e no final do processo educativo o resultado da didática de Anne transformou a jovem numa dama de comportamento melhor do que outras moças do ambiente social em que vivia. Propor o sistema de voto distrital misto vai depender muito de paciência, tolerância, persistência, diálogo e boas lideranças. Desejo-lhe senhor Fernão e a seus apoiadores o pleno sucesso para que o Brasil seja de fato de todos os brasileiros atuando nas coisas da política. Adeus aos “políticos” super privilegiados desde as Câmaras Municipais, passando pelas Assembléias Legislativas e no Congresso Nacional.

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  • Antonio Brigolatto Carmona Barrionuevo disse:

    Artigo escrito por quem conhece o ramo e sabe exatamente colocar as palavras certas em cada oração. Se todos os artigos que lemos por aí, fossem claros como esse, o prazer de ler aumentaria muito.

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