California dreamin’

22 de janeiro de 2019 § 19 Comentários

Artigo para O Estado de S. Paulo de 22/1/2019

Queixam-se do Congresso mas o nosso maior problema está no pedir e não no que nos é entregue. A falta de qualquer referência não européia nos põe mais longe da saída que todos os outros percalços somados.

A relação interpessoal proporcionada pela internet, lamentava-se o franco-uspiano Fernando Henrique Cardoso num programa que comparava os fenomenos Trump e Bolsonaro na TV na virada do ano, bagunçou um coreto que foi armado para e pela intermediação dos partidos (sustentados pelo governo), atraves das TVs (outorgadas pelo governo), da imprensa e do resto desse nosso “sistema de representação do povo” sem povo. Do outro lado da mesa esbravejava um representante da outra corrente européia com que nos alternamos quando a terceira, a abertamente antidemocrática, dá folga. “Prendam todos! Não deixem nenhum à solta”! A provocação era trancafiar FHC também, mas essas duas faces da nossa “persona” européia se odeiam mas são gêmeas. Para uma “o sistema” é bom, o que falta é só política. Para a outra “o sistema” é bom, o que falta é só polícia. Nutrem ambas um mal confessado horror à falta de glamour e refinamento da igualdade não intermediada. À vida regida pela base da sociedade e não pela “autoridade dos melhores” (aristo-kratia). Ao império sem filtro da lei, à meritocracia e à destruição criativa.

Mas nós falamos, afinal, do “pior dos regimes políticos, excluídos todos os outros”. E é aí que encaixo Roberto Damatta relatando sua própria experiência de brazuca emigrado para os Estados Unidos no artigo “Encruzilhadas” publicado neste jornal nesta quarta-feira, 16, em que escrevo. “Passar da desigualdade para o igualitarismo requer acrobacias sociopsicológicas (…) impossíveis de praticar sem um exame aprofundado (…) de quem fomos e de quem somos porque os costumes são tão coercitivos quanto as leis”. Não temos conserto dentro desse “passado aristocrático absolutamente eurocentrado de imperadores (…) e a massa negra escravizada (…) que nossos pensadores viam (e inconfessadamente continuam vendo até hoje) como natural”.

A reforma previdenciária”, resumia Damatta, “tem de fazer parte de um movimento arrebatador. Trata-se, no fundo, de uma guerra do Brasil contra o seu lado equivocado”.

Os Estados Unidos menos americanos, o federal, estão à beira da disrupcão como farsa pela mão de Donald Trump, O Tapeador, mestre da manipulação das redes. Já a Europa saiu do feudalismo mas o feudalismo nunca saiu da Europa. De lá vieram e nos foram impostos “os costumes tão coercitivos quanto leis” que estão aí até hoje mas nós já nem sentimos. O Brasil pós-Tiradentes passou a censurar com fúria a nossa americanidade essencial de povo até então sem rei e nunca mais parou. E quanto mais privilégios os nossos “representantes do povo” independentes do povo “adquirem” e transformam em lei mais se inverte e perverte a hierarquia povo-governo que a democracia nasceu para estabelecer até transformar-se nesse esdrúxulo feudalismo constitucional a que acabamos por nos acostumar.

Para termos democracia será preciso, antes de mais nada, aprendermos a identificá-la. “Esse sistema sempre em débito consigo mesmo, inacabado e caracterizado por permanentes ajustes”, na descrição de Damatta, define-se essencialmente pela quantidade de poder que o eleitor tem antes e depois do momento da eleição para levar adiante esses ajustes. E o brasileiro não tem nenhum.

É essa a doença. Corrupção é só ausência de democracia e não vai acabar apenas com polícia. Não é da Europa que a resposta virá. A democracia real é a anti-Europa. Nasce em função da ausência do rei e caminha de oeste para leste. Da América impôs-se à Europa. Da Costa Oeste impôs-se à Costa Leste dos Estados Unidos. No Brasil será parecido. O último a entrar será o da praia.

Nos primeiros dias deste ano a Califórnia, que ainda no século 19 começou a revogar o modelo estático que nos oprime, contabilizava a safra de democracia dos 12 meses de 2018. Que Trump, que nada! 726 leis de inciativa popular, referendos de leis dos legislativos, votações de retomada de mandatos (recall), eleições de retenção de juízes e outras decisões foram diretamente votadas pelos californianos nas 9 “eleições especiais” convocadas para esse fim além da nacional de 6 de novembro. Quase uma por mês.

Dentro do sistema distrital puro, começando pela célula do bairro que elege o board de pais de alunos que vai gerir a escola publica local e seguindo pelos distritos eleitorais municipais (uma soma dos de bairros), estaduais (uma soma dos municipais) e federais, cada pedacinho do país elege apenas um representante para cada instância de governo. Como o que define o distrito é o endereço do eleitor todo mundo sabe exatamente quem representa quem. E sendo a identificação tão clara ele retem o direito de cassar o mandato do seu representante a qualquer momento mediante a coleta de assinaturas e a convocação de “eleições especiais” só no distrito afetado para decidir essas e outras questões.

As que envolvem impostos não têm exceção. Nenhum nasce ou se mexe sem voto. As que ordenam obras publicas e decidem como serão financiadas idem. Os futuros usuários decidem se as querem ou não no modelo e pelo preço proposto e estabelecem, uma por uma, quem, como e quando vai pagar por elas. Valor do IPTU, construção ou não de uma ponte, valor do salário minimo local, reajuste de planos de saude, liberação ou não da maconha, normas para compra e uso de armas, tudo é decidido no voto em cada distrito eleitoral municipal, estadual ou federal somente por quem vai usar cada bem, pagar por ele ou ser obrigado a se submeter à lei em exame.

Olhado a partir da meca planetária da inovação política, que não por acaso é também a meca planetária da inovação tecnológica, o mundo não parece, portanto, tão disfuncional quanto Fernando Henrique o vê. Essa democracia e as redes têm tudo a ver. Nós é que, desde 1808, andamos perdidos no desvio europeu.

Mudar o país de dono, vulgo democracia, é o que cura o Brasil.

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§ 19 Respostas para California dreamin’

  • marcos andrade moraes disse:

    Muito boa! Resta saber como é que vc enquadra nesta reflexão a casta mais antiga do Brasil, as FA, que vc apoiou, votou e elegeu. Quando é que eles substituirão OC por vc? MAM

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  • VARLICE RAMOS disse:

    Belo texto!
    Triste realidade a nossa – que com certeza um dia mudará.

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    • A. disse:

      … “um dia mudará.”
      – O Brasil é, com certeza, um país ortodoxalmente coerente: aqui, o futuro é mesmo, sempre, o amanhã! Quando chega, vira hoje e continua tudo como está… Deve ser o sentimento católico que nos impregna: “Per Omnia Secula Seculorum, Amen“! Querida Varlice (perdoe a intimidade): quando esse seu dia chegar, seremos todos poeira cósmica…

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  • A. disse:

    “Trata-se, no fundo, de uma guerra do Brasil contra o seu lado equivocado”.
    – A Bíblia descreve essa luta aí: Davi x Golias! Mas Deus deu a Davi a sagacidade e uma funda. Ao Brasil deu sacanagem e conformismo…

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    • flm disse:

      Isso é só desculpa para você não dar nem a sua pedradazinha…
      O Davi é você, meu chapa! E deus só ajuda quem se ajuda

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      • A. disse:

        Não usei a metáfora pra me desculpar. Tentei apenas ser bem humorado mas parece que fracassei. Nem sei se Deus existe… há controvérsias – e se existir deve cuidar de coisas mais relevantes que o gênero humano em geral e a nacionalidade brasileira em particular!
        O comentarista lá de cima acorda cedo só pra te contrariar (deve ser coisa pessoal). Alguns outros, mais pra baixo, apontam soluções apenas “se isso, se aquilo, se aquilo outro”. Apenas pré condições. De concreto, nada!
        Dou minhas “pedradazinhas”. Mas você já sentiu o gosto amargo de ser impotente perante alguns fatos esmagadores da vida, que escapam totalmente ao seu controle e à sua competência? Na última manifestação pública do ano retrasado na minha cidade, a favor da Lava Jato, compareci SOZINHO! Nem o caminhão de som do movimento organizador compareceu. A minha pedradazinha teve o efeito de um bumerangue…
        Enfim, ‘tamos vivos e temos que continuar insistindo!
        Abração e obrigado pelo espaço!

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  • Fernando Lencioni disse:

    Sair às ruas e pedir essas mudanças é o único caminho. Enquanto vocês ficarem em casa ou nos bares ou ainda dividindo quem procura nos unir certamente nada acontecerá. Democracia se faz com participação e com lutas. Se juntarmos um milhão de pessoas na paulista pedindo essas mudanças elas virão como vieram todas as recentemente cobradas nas ruas. Será que é difícil entender isso?????? Parem de terceirizar uma responsabilidade que é nossa!!!!!!! Vamos usar as redes sociais e tudo o que pudermos para criar uma manifestação monstro. É nossa obrigação como cidadãos conscientes e patriotas.

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  • Alexandre Souza disse:

    Curiosamente, o europeizado social-democrata FHC tem como “livro de cabeceira” o A Democracia na América”, do Tocqueville. Bom, ao menos foi o que ele disse uma vez num certo programa de TV…

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    • Fernão disse:

      É perfeitamente social-democrata: “de quem eu gosto, nem às paredes confesso”…

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      • Alexandre Souza disse:

        Se não me engano, foi no mesmo programa que o FHC disse – foi instado, claro! – ser a Suécia seu modelo de país. A depender dele, o Brasil deveria ser então uma espécie de Suécia tropical. FHC está olhando na direção errada: a Suécia deve ter mais semelhanças com o Japão do que com o Brasil.

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  • Fernão
    Penso que há uma questão anterior levantada pelo novo Chanceler, que requer atenção: a questão da identidade brasileira. Sua análise, como sempre muito perspicaz, parte do pressuposto que somos republicanos. Será? Eu sou brasileiro, sinto orgulho de sê-lo e não vejo na brasilidade nada que possa me envergonhar. Nos últimos anos tentaram impor-me sentimentos e valores absolutamente estranhos ao meu modo de ser, em tentativa evidente de diluir a minha carga ancestral e tornar-me um zumbi capaz de aceitar qualquer coisa. Quiseram me inimizar com as mulheres, mas eu gosto delas. Quiseram me separar dos nordestinos, mas eu passo todas as férias lá. Quiseram me impor preconceitos de raça, mas corre em minhas veias, sangue europeu, africano e ameríndio. Querem o que? que eu brigue com minhas hemácias? Mais, não sou politicamente correto, tenho um bicho potencial dentro de mim que requer permanente vigilância. Isso indica que para além da identidade brasileira existe ainda uma identidade humana que também determina meu modo de ser. Não posso ser diferente do que sou e manter saúde e equilíbrio mental. Sabemos, Fernão, realmente, quem somos? Podemos projetar uma organização social adequada sem consciência clara da nossa identidade? Concordo com o voto distrital e com o direito das comunidades decidirem localmente o que lhes convém. Mas república, sinceramente, tenho grandes dúvidas.

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    • Fernão disse:

      como o DaMatta mencionou, a História é a psicanálise das sociedades e teremos de entender como chegamos ao que somos para nos libertarmos para sermos diferentes.
      quanto a republica/democracia, mesmo quem não sabe bem o que é sabe o essencial: que é o povo e não a máfia que tem de mandar. isso virou valor universal indiscutível a ponto de todas as soviéticas sentirem que tinham de se chamar “republicas” quando não “republicas democráticas” e todas as ditaduras se fingirem de democracias (“excessivas” como diz o Lula da venezuelana).
      finalmente, não sei de onde v tirou que eu penso que somos uma republica quando eu estou dizendo aí literalmente que somos um “feudalismo constitucional”…

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      • Penso que não me fiz entender. A questão da identidade que tenho em mente não visa ser diferente, mas assumir o que se é sem fingir ser o que não se é. Bruxelas tenta criar um europeu idealizado, sufocando alemães, franceses e italianos reais. Não tem qualquer possibilidade de dar certo. Quanto ao modelo de organização política, reformulo com indagação direta: na sua opinião, pode-se pensar em monarquia parlamentar democrática, com regime eleitoral distrital?

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  • Sônia disse:

    Fernão, como sempre artigo brilhante e didático. Temos que insistir no próprio aprendizado.
    O problema, como sempre, são os POLÍTICOS. Já fizemos ótima limpeza, mas falta muito. Vamos ao Estado do Espírito Santo, onde o governador anterior, o Paulo Hartung fez ótimo serviço e pôs as contas em dia. Não há crise fiscal por lá. Por enquanto… O novo governador e a câmara eleita, por UNANIMIDADE, DESRESPEITANDO AS LEIS, votou a favor do PERDÃO dos grevistas ilegais e ainda pagou o salário integral e retroativo de todos.
    Nos EUA, onde o shutdown não é culpa dos funcionários, são eles que estão sem receber salário há um mês. Veja a diferença de posicionamento. Se fosse aqui, receberiam adiantado e ainda aproveitavam para tirar férias e aplaudiriam a situação. Enquanto não fixarmos que a Democracia é o Império das Leis na cabeça de nossos representantes, que mais do que flertar com o descumprimento delas são visivelmente adeptos disso, não iremos a lugar algum. O povo do Espírito Santo deveria EXIGIR que se cumprisse as leis e não aplaudir a demagogia.

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    • Fernando Lencioni disse:

      Desculpe Sônia, não é o cumprimento das leis que devemos exigir, pois esse é exatamente o equívoco e o artifício usado pelos que usam a máquina governamental para nos roubar: eles usam a lei. Bastiat já ensinava no século XIX que o socialismo usa a lei para usurpar as nossas riquezas, o nosso patrimônio para fazer benemerência com o chapéu alheio. E se vc acha que o que temos no Brasil não é socialismo olhe de novo. Temos um regime socialista fabiano ou, trocando em miúdos, uma “social-democracia. A nossa Constituição é social-democrata. A ideia de universalidade, integralidade e igualdade do SUS é totalmente socialista. Em nenhum país sério do mundo se garante assistência médica e hospitalar a estrangeiros, pois eles não contribuem para o sustento do sistema. No Brasil qualquer turista que estiver no Brasil tem direto a assistência médica e hospitalar como qualquer brasileiro. Ora, quando nós brasileiros viajamos para o exterior precisamos ter seguro saúde pq senão poderemos ser impedidos de entrar no país que estamos visitando exatamente pq o sistema deles só garante atendimento àqueles que contribuem. A natureza socialista desse sistema é que torna a saúde no Brasil um saco sem fundo e os serviços tão ruins. Note o quanto o governo usurpa de vc através da lei para dar para os outros. Esse regime quase afundou a Inglaterra e se não fosse a Margareth Thatcher teria falido o país deles. Quando vc pensar em lei não se esqueça que as leis de um país em um determinado momento histórico é o resultado do polígono de forças que compõe o grupamento social. Por isso, o simples fato de de ser lei não garante que o seu conteúdo, o seu comando seja justo. E, pra falar a verdade, na maioria das vezes não é. É um meio de controle social. Especialmente em países como o nosso no qual o povo que é quem tem o poder de verdade, fica esperando que alguém faça por ele o que cabe a ele mesmo fazer.

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  • Fernando Lencioni disse:

    Social-democrata, desculpe, erro do corretor.

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    • Sônia disse:

      Prezado Fernando, se nossas leis são péssimas, o que precisamos é mudá-las. Veja, no próprio artigo há informação de que foram votadas 726 leis lá na Califórnia. O que precisamos é de que a lei seja igual para todos – nós cidadãos comuns somos obrigados a elas, sem questionamento. Já os considerados “acima” das leis são os que a usam para nos roubar dentro delas. São nossos próprios legisladores que legislam em causa própria e assim se apropriam de tudo. Temos de passar a considerar os privilégios como corrupção. Questionar o porquê um juiz tem todos os pendurucalhos que são considerados “normais”, com o estudo dos filhos sendo pago até os 24 anos (pode se dar ao luxo de ser um péssimo estudante e repetir e mesmo assim ser financiado pelo dinheiro público). Temos boa chance agora de mudar. Ares novos estão soprando por aqui. Não podemos perder nem a chance e nem a esperança. Não vai ser fácil, mas temos de ir em frente.

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