O efeito Picciani

21 de novembro de 2017 § 17 Comentários

Artigo para O Estado de S. Paulo de 21/11/2017

Depois de Lula e dos demais esquecidos da primeira temporada deste emocionante seriado, tivemos Temer, Aécio e agora os Picciani…

O ciclo é sempre parecido: à completa e persistente omissão com relação a crimes de todos velhíssimos conhecidos sobrepõe-se, de repente, uma super-reação das mesmas autoridades até então omissas desencadeada, em geral, para desviar a atenção dos alvos realmente visados por essas subitas inversões de comportamento. Segue-se a comoção publica expressa numa “indignação” que pode incluir todos os ingredientes menos o de uma genuína surpresa com as “revelações” sobre o comportamento de sempre dos alvos da vez, que deságua invariavelmente na desolação com os panos quentes em que tudo acabará morrendo.

Fiquemos com o episódio mais recente. Quem não sabia, sobretudo no Rio de Janeiro, quem são os Picciani? O pai é, ha quatro mandatos, presidente da Assembléia Legislativa do RJ. Um filho, Rafael, era o secretário de Transportes de Eduardo Paes. O outro, Leonardo, foi contratado por Dilma como o goleiro do impeachment na Camara Federal, entregou o voto contra que vendeu e, mesmo assim, Temer teve de engoli-lo como seu ministro de esportes. Ou seja, ele virou o dono oficial da Olimpiada. Extra-oficialmente, a torcida do Flamengo e o resto do Rio inteiro sabiam que a estrutura fisica do evento que a Rede Globo faturou comercialmente sozinha ja era território privativo de caça da família, dona da Mineradora Tamoio de onde saiu cada pedra da construção da Cidade Olímpica e da reforma geral do Rio de Janeiro que inglês veria na Olimpíada comprada por Lula, O Esquecido, nos termos pelos quais acabou pagando o laranja Carlos Arthur Nuzman. O esquema dos Picciani é prosaico de tão explícito. Depois do milagre da conversão de uma estação de trens publica no shopping center privado batizado de Centro Comercial de Queimados, eles vêm, sucessivamente, transformando os bois que essa operação rendeu em pedra para obras publicas e estas em mais e mais bois da Agrobilara, sócia da Mineradora Tamoio e de tantas cositas mas.

Mas o padrão brasileiro não varia. A exposição com pompa e circunstância do que todo mundo sabia desde sempre gera uma espécie de “obrigação” de uma repercussão. E la vai a falsa imprensa (a verdadeira acaba tendo de ir de arrasto) estendendo microfones a figuras escolhidas para bradar o óbvio. E isso pede outra reação das autoridades que, sabendo desde sempre de tudo e até, frequentemente, tendo participado da falcatrua, nunca se tinham dado por achadas. Como a nossa justiça é feita para que processo nenhum chegue ao fim, o abacaxi invariavelmente vai parar no colo do STF. O país divide-se, então, em “lados”: os que querem que os milhões de eleitores se danem e possam ser substituídos pela decisão de 6 juízes com posições assumidas na disputa de poder e os que são obrigados a engolir a impunidade do ladrão flagrado para não dar a 6 juízes essa perigosíssima prerrogativa.

Evidentemente essa não é a única alternativa possível. No mundo que funciona existe o direito a leis de iniciativa popular para garantir que o Legislativo discuta o que o país achar que ele deve discutir, o referendo para garantir que ele não desfaça o que o povo mandar ele fazer, e o recall para garantir que assim seja, amém, porque quem manda é quem demite.

Todo mundo sabe que o problema não é o sujeito submeter-se ou não ao poder econômico, o fantasma contra o qual todos os exorcismos, mesmo os mais primitivos, são justificados no Brasil, o problema é você não poder tirar ele de la nem que fique provado que é um vendido. Não resolve nada montar esquemas incontroláveis por definição para financiar campanhas eleitorais com “dinheiro público”, essa coisa que não existe. Não adianta nada dar superpoderes ao Ministério Público e à Polícia Federal. Ao contrário. Isso é um perigo pois, daí pra frente, como é que fica? Tem de torcer pra que eles não se corrompam nunca, mesmo podendo tudo? Que não entrem jamais no jogo político? Que não exijam supersálarios já que são super-homens?

O chato nessa história é tudo ser tão certo e sabido e ha tanto tempo. É o poder que corrompe. O dinheiro é só um meio pra comprar poder, já se sabe desde a Bíblia. Por isso o sentido da democracia é sempre diluir e jamais concentrar o poder. Ou seja, nem o Judiciário tem de tirar, nem o Legislativo tem de repor político flagrado no cargo. Não é o cargo, é o mandato que deve ser protegido por certas imunidades, exatamente porque pertence ao eleitor, o outro nome do povo, unica fonte de legitimação do poder numa democracia. O que quer que se invente em materia de sanção à corrupção nada vai ser tão eficiente, tão barato e, principalmente, tão à prova de corrupção, portanto, quanto dar ao eleitor, e só ao eleitor, o poder de se livrar, no ato e no voto, de todo agente público que der o menor sinal de que se corrompeu, aí incluídos também os juízes, os promotores e os policiais.

Ah mas brasileiro não tem cultura nem educação pra isso”.

E quem é que tem? O político brasileiro?! O juiz que ele nomeia?! Desde quando precisa de cultura e educação pro sujeito saber quando tá sendo roubado? Conversa! Os Estados Unidos fizeram essa reforma no final dos 1800 quando a população era aquela dos filmes de caubói…

O Brasil tem cura, mas tem que focar em duas coisas. A primeira é que democracia é quando o povo manda e os políticos SÃO OBRIGADOS a obedecer. A segunda é que, na vida real, manda quem tem o poder de demitir. O resto é mentira.

Só o eleitor tem o direito de dar e de tirar mandatos a pessoas comuns pra exercerem temporaria e condicionalmente poderes especiais. O território do Legislativo acaba antes e o do Judiciário só começa depois desse limite que é exclusivo dele. Passar esse poder a qualquer agente público é acabar com a legitimidade da representação que sustenta todo o edifício da democracia e plantar a corrupção e a opressão que, com toda a certeza, a gente vai colher amanhã.

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§ 17 Respostas para O efeito Picciani

  • marcos a. moraes disse:

    ” …A segunda é que, na vida real, manda quem tem o poder de demitir. O resto é mentira…. ” Quem demite barnabé? Aqui em JF há um fdp que diz sem ficar vermelho: “meu patrão é o povo”! Ora, o povo que o sustenta há 25 anos nem sabe que ele existe. Se soubesse já o teria demitido…MAM

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  • A Bíblia conta que um dia Jesus perdeu a paciência, usou o único argumento restante e expulsou os vendilhões do templo…

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  • luizleitao disse:

    Ótimo, FLM, mais didático, impossível. Continue em frente que nós te apoiamos e, um dia, certamente, o público irá sacar esse princípio tão cristalino de que “manda quem tem o poder de demitir”. Desta vez, o texto está bem mais claro, no sentido de acessível até ao leitor menos esclarecido.

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  • Basta! É agora disse:

    Bom dia Fernão!

    Tenho grande interesse em aprofundar conhecimentos em geral, do funcionamento do sistema democrático dos EUA e de outras democracias, que tenham o mesmo nível de poder exercido pela sociedade em relação aos poderes do executivo, judiciário e sobretudo do legislativo, que é o que mostra o norte ao país.

    Desperta-me grande curiosidade em entender o sistema de eleições em geral, primárias, voto distrital puro, não somente do executivo e legislativo, em todos os níveis, bem como de cargos do executivo, judiciário e segurança pública, sistema de recall, e por aí, vai.

    Peço então, desde já com enorme gratidão, indicação de fontes literárias, seja de livros ou fontes seguras na internet, onde poderei ampliar bons conceitos democráticos.

    “Para metas de 1 ano, plante arroz. Para metas de 10 anos, plante árvores. Para metas de 100 anos, eduque pessoas” – Guan Zhong

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    • flm disse:

      a melhor fonte é o site ballotpedia, que cobre sistematicamente esse nivel da política americana.
      no mais, esse é sempre um pedido difícil de atender. os americanos estão tão certos dos seus direitos e prerrogativas que não se dão conta da própria excepcionalidade. e depois lá não existe aquela figura do herói com a espada na mão que da um grito e começa um novo sistema. cada cidade faz a sua lei no seu proprio momento. cada lugar funciona de um jeito. embora no fim tudo vá convergindo para o mesmo lugar, tem diferenças bem grandes.
      nos livros deles v tem de ir montando essa história quase como um quebra cabeça. como todo povo, perdem um tempo enorme com minúcias sem nenhuma importância para quem olha de fora.
      pode interessar ler biografias de theodore roosevelt (the bully pulpit, se v le ingles, ou a trilogia escrita por edmond morris) ou googar o tema “Progressive Era reforms”

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  • Zsolt Kolossvary disse:

    É Fernão …. Temos que lutar, antes que o novo diretor da PF , Gilmar Mendes e outros tantos rasguem de vez a Constituição.

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  • Carmen leibovici disse:

    a coisa que mais me choca é ouvir :”juiz é como bunda de nenê:nunca se sabe o que pode sair de lá de repente”.jamais poderíamos ter nossos destinos dependentes do humor(ou de outro fator que não legitima justiça)de qq outro ser humano seja ele juiz,deputado,presidente
    esse é o problema,e por isso concordo com o ponto de vista do fernão:mancou?tem de cair fora.pais sem justiça não é nada mesmo sendo esse um ideal utópico para as nação.chegar mais perto desse ideal já é mto

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  • Olavo Leal disse:

    Já me apresentei anteriormente como defensor (implacável) do federalismo, que, julgo, em conjunto com os ideais aqui defendidos (voto distrital puro e recall), representam o caminho para a solução dos problemas do País.
    O federalismo representa (ou conduz para) um estilo de vida liberal: o indivíduo consegue resolver QUASE TODOS OS SEUS problemas do dia a dia.
    Para o que ele não consegue resolver sozinho, busca parcerias, como casamento, condomínios, associações de bairro, clubes sociais e esportivos, escolas, igrejas, associações de beneficência etc (instituições para as quais colabora financeiramente, cobrando soluções eficientes dos seus pares e/ou daqueles que elegeu para representá-lo).
    Acima disso, a solução (numa hipotética República FEDERATIVA do Brasil) deveria vir do MUNICÍPIO, que se responsabilizaria pelo atendimento de todas as necessidades superiores do indivíduo, nos campos político, econômico social e de segurança. Para isso, o CIDADÃO deveria ter o direito (ou obrigação) de escolher o modus operandi do Município (quem o governa, como e por quais prazos são eleitos seus representantes, recall, reeleição, carga tributária etc).
    Aos ESTADOS caberia a solução dos macroproblemas, ou seja, aqueles que não podem ser resolvidos pelo Município, isoladamente; seriam, portanto, problemas ou serviços inerentes a mais de um Município (ou a todos eles): rodovias, ferrovias, grandes portos e aeroportos, hospitais regionais, policiamento geral, obtenção e transmissão de energia etc. Seus habitantes escolheriam, também, os processos eleitorais, do executivo, do judiciário e do legislativo estaduais.
    E à UNIÃO caberiam somente os problemas notoriamente supraestaduais e nacionais: FFAA, PF, Justiça Constitucional, Relações Exteriores, agências nacionais etc.
    O POVO deveria escolher quais e quais tributos seriam devidos a qual nível – Município, Estado e União.
    Alguém pode pensar: como resolver o problema das notórias diferenças regionais? Cada Unidade Federativa escolheria, mediante consulta a seus próprios habitantes, a sua condição perante a União. Os mais potentes escolheriam ser autossuficientes, independendo de investimentos federais (contribuindo à União com um único imposto nacional); outros, escolheriam inicialmente depender 100% da União (seriam Territórios Federais, cujos impostos, exceto os devidos ao Município, seriam todos federais; tal condição seria temporária, pois, atingidas determinadas metas de desenvolvimento, haveria uma elevação à condição superior). Haveria, também temporariamente, uma condição intermediária, na qual os ex-territórios receberiam investimentos federais apenas pontualmente (proibidos os repasses ao custeio): expansão de uma universidade, rodovia, ferrovia, hospital etc.
    Conclui-se assim que o problema do Rio de Janeiro seria resolvido pela própria população fluminense, que reteria seus próprios recursos tributários e receberia, no máximo, algum apoio federal, extremamente pontual. O Rio de Janeiro, por seu potencial, jamais poderia depender tanto do governo federal, como estamos vendo.

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  • VARLICE RAMOS disse:

    Belo texto, Fernão! Obrigada.
    Vivemos tal descalabro que o Diretor-Geral da PF vem a público questionar que uma mala de dinheiro não seria prova.
    Quantas seriam necessárias para incriminar Temer?
    Um abraço.

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  • João disse:

    A reforma que precisamos antes de mais nada é na cabeça do povo eleitor.

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  • A cada dia acho que o único jeito mesmo é 0 linchamento em praça pública ou chamar os Jacobinos para fazer uma limpeza…

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  • Marcos Jefferson da Silva disse:

    Voto distrital com recall! Poder de volta na mão do povo.

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