Brasil e o lobo

30 de março de 2017 § 10 Comentários

Artigo para O Estado de S. Paulo de 30/3/2017

Nem a imprensa, nem a polícia sozinhos. O problema é quando as duas deixam de lado a função de controlar uma à outra para cair numa espiral de mutua manipulação que anaboliza perigosamente a força de ambas e só pode resultar em catástrofes como a da “Carne Fraca”.

Aquilo foi um filme acelerado dos últimos três anos. Querer proibir que se tire do episódio as conclusões que ele aponta é desperdiçar mais uma oportunidade – talvez a última – de sairmos da rota de desastre. Um caso de fraude a contrato com a merenda escolar, outro de suspeita de utilização de carne além do prazo de validade na fabricação de embutidos e mais dois ou três indícios de pecadilhos menores envolvendo dosagens de conservantes e de componentes empregados em receitas de carnes industrialmente processadas. Nem a Policia Federal nem a imprensa sozinhas conseguiriam, com material tão fraco, destruir o último polo de excelência que sobrevivia no país e por seis milhões de famílias na rua da amargura. Mas juntas…

Tem sido um processo. A imprensa foi sinalizando “ao mercado” que o simples carimbo do “teve acesso a” passava a ser suficiente para legitimar a publicação sem nenhuma apuração independente de material vazado por partes interessadas. Com o tempo passou-se a disputar esses falsos “furos jornalísticos” com a superexposição do material obtido. Policiais e promotores obscuros passaram a ter, de repente, a exposição que não se dá nem a presidentes nos momentos de crise nacional.

O resultado é um clássico da literatura universal. Pode-se conjecturar quanto de amor à justiça, de vaidade, de simples leviandade ou de intenções criminosas tem havido por trás de cada um desses episódios. Mas negar que as coisas evoluíram para um esquema fácil demais de delação + grampo telefônico + exposição de pedaços de verdade, resultando em generalizações temerárias, injustiças, insegurança jurídica, paralisia econômica e destruição maciça de riqueza; negar que essa arma está ao alcance de todo e qualquer bandido da politica e tem sido usada para por a verdade a serviço da mentira e a justiça a serviço do crime é pelo menos tão desonesto quanto afirmar que é sempre só a isso que se resume a Lava Jato.

Ha duas disputas sobrepostas nesta encruzilhada da vida nacional. Aquela com que mais se procura entreter o público é a da corrida pela herança formal da terra arrasada em que o país se vai transformando e anima a novela da corte que hipnotiza a imprensa. Essa disputa, até segunda ordem, ainda se resolve no voto que, não por acaso, é a bola da vez. A outra, mais subterrânea e essencial, regida pela aritmética, é a que, mais cedo ou mais tarde, terá necessariamente de desaguar numa profunda revisão da repartição do PIB entre a casta que se apropriou do estado e detém os privilégios ilegítimos que se especializou em contrabandear para dentro da ordem legal e a multidão dos trabalhadores da economia privada sucessivamente saqueada para sustenta-los.

Essa disputa obedece a alinhamentos que transcendem os que regem o discurso das confrarias envolvidas na primeira e faz com que, nos bastidores, manobrem e votem na mais perfeita ordem unida do mais reacionário “pastor” à mais carbonária das “passionarias” do Congresso, sempre a favor do privilégio (dos 86% de funcionários excluídos da reforma da previdência, por exemplo) e contra o povo miserável que pagará mais impostos por isso.

Encurralada pelo esgotamento do organismo hospedeiro que colonizou, a “privilegiatura” brasileira, assim como todas que a precederam na História, vai se arrastar até onde lhe permitirmos que se arraste. Mas a extensão dessa sobrevida, indefensável por qualquer tipo de argumento racional, dependerá essencialmente de manter o eleitorado confundindo essas duas lutas uma com a outra.

A polarização do debate nacional pelo “patrulhamento ideológico” e o medo dos “linchamentos morais” promovidos a pretexto de “defesa da operação Lava Jato” é hoje o principal artifício a que se tem recorrido para estabelecer e manter essa confusão.

Mas fatos são fatos. É em sintonia perfeitamente fina com a alternância das figuras de turno no poder, a evolução do calendário eleitoral e, mais especialmente, o cronograma das reformas que se vão sucedendo os personagens visados nas delações. Marcelo Odebrecht exerce hoje um poder maior que o que jamais sonhou, na sua megalomania, poder comprar com dinheiro. Qualquer nome que meramente pronuncie está condenado a arder eternamente no mármore do inferno. O movimento redentor que começou com o rigor de investigação e as sentenças precisas e individualizadas do “Mensalão” e mobilizou o país inteiro a ter esperança iguala hoje, sob a indiferença geral, todos os políticos ao Lula da hipercorrupção pelo poder ou aos cunhas e cabrais da hipercorrupção pelo dinheiro, todos os empresários que doaram para campanhas ao nosso multinacional Midas pelo avesso e, por ultimo e não por menos, toda a indústria brasileira de proteína animal a uns tantos picaretas e fiscais corruptos pendurados nela.

É o “meio” que tem feito a “condenação” onde quer que se o aplique.

Capturar e punir ladrões é essencial. Mas as culpas são de quem as têm. Todas as democracias do mundo convivem com o financiamento privado de campanhas porque a alternativa é óbvia e ululantemente muito pior. O STF lavrou sentença provando que é fácil diferenciar os raupps do trigo e até Dallagnol já discursou que não importa o “numero” do caixa, todos podem incluir ou não corrupção que é sempre fácil de identificar e punir. Mas a conclusão dessas premissas ninguém afirma em voz alta porque defender financiamento privado e individualização de julgamentos seria “renegar a Lava Jato”.

E tome lista fechada!

O mundo se assustou com o show diário a que nos acostumamos mas em poucos dias já dava pra ver até da China que não é o caso de pegar a arma e sair atirando cada vez que se grita “Lobo!” por aqui. Não seria hora da gente aprender também?

§ 10 Respostas para Brasil e o lobo

  • Alvaro Coelho da Fonseca - Presidencia disse:

    Muito bom….

    Enviado do meu iPhone

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  • Lourenço Meireles Reis disse:

    Parabéns muito bom

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  • Carmen Leibovici disse:

    Agora sou eu a voltar ao voto distrital com recall.”Comprei” a ideia para valer.

    Nada disso que esta acontecendo aconteceria se o Brasil estivesse dividido em pedacos,com apenas um vereador para resolver questoes legislativas do local(distrito) ;com um fiscal apenas para resolver questoes sanitarias da industria ou importadora pertencente ao local;com um numero de juizes tambem para atender somente questoes da comunidade;com obrigatoriedade ,por parte de cada instituicao publica ,de comunicacao de atos oficiais para toda a comunidade local;com deputados estaduais trabalhando por areas especificas,com numero controlado ,proporcional ao numero de habitantes,etc.
    E com o instrumento do recall para a populacao ficar com o controle remoto em maos.

    Tudo que acontece,inclusive a confusao, no Brasil acontece porque o Brasil e baguncado:60000 vereadores ,com seus 17 assessores cada, que nao atendem ninguem,quando poderiam ser apenas 2000 e poucos atendendo; com nao sei quantos mil fiscais sanitarios ,e de outros tipos,que ,tambem ,parece que ,tem liberdade para escolher onde e como atuar sem ordem e organizacao;com concursos sendo abertos sem que se saiba exatamente porque razao;com entrega de cargos sem razao de ser etc.
    Essa confusao ,e falta de controle por parte da populacao,evidentemente,favorece os espertalhoes.

    O Brasil precisa de um novo organograma-se e que teve algum dia e ,
    ai, nao havera narrativa ficticia que prevaleca sobre a posse popular do “sistema”.

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  • Adriana disse:

    Muito bom o texto. Acho que não tem quem seja contra a lava jato. Mas, de fato, há um desfile midiático dos privilegiados, sejam meios de comunicação privilegiados, sejam políticos e seus privilégios, sejam juízes e promotores e seus privilégios.
    Enquanto isso, o cidadão comum, tal como a burguesia na idade média, os sustenta, a duríssimas penas, que a cada dia se torna ainda mais dura.
    Sem direito a aposentadoria privilegiada, e sem direito a garantia privilegiada no emprego, chega a ser alvo da soberba dos privilegiados, que brandam seus privilégios por se acharem mais inteligentes e mais estudiosos. Não entendem que há diversas espécies de estudo e trabalho, e somos seres colaborativos. Temos que construir uma sociedade mais eficiente, juntos.
    Os hospedeiros já não tem forças, e não acreditam mais no país. Os privilegiados não terão como prosseguir em seus privilégios. Mas tirarão a última gota de todos, sem dó, já que possuem direito adquirido, nos termos da Constituição.

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  • José Silverio Vasconcelos Miranda disse:

    A aliança da imprensa desinformada e ávida por ” carniça”, polícia despreparada, e a busca de furos e holofotes é uma mistura letal.
    O estrago foi enorme. Destruiram o bom conceito de uma indústria que
    tropecou muito para chegar onde chegou. Não defendo frigoríficos .
    Sobretudo os maiores me cheiram mal. Defendo a cadeia produtiva, do
    pequeno criador de frangos e perus, parceiro da indústria, ao suinocultor
    e os pecuaristas que levaram mais de cem anos para criar um boi excelente. Publiquei isso no blogdomariobh.blogspot.com.

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  • PAULO SERGIO disse:

    Excelente! E ver publicado em um grande jornal, melhor ainda. A mídia precisa fazer sua mea-culpa. Deixa-se manipular e põe lenha na fogueira ou joga no lixão do esquecimento. Cria consensos que não existem, inventa desavenças, derruba presidentes, ludibria o cidadão comum. Muitas vezes me pergunto, será uma máquina que opera no automático com centenas de jornalistas loucos para aparecer e dar um furo ou será que o editor é atuante e filtra o que combina com seu viés político-ideológico? Ultimamente, tenho a impressão que o último está ganhando.

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  • Um delegado da Policia Federal em busca de seus cinco minutos de fama. Uma imprensa com jornalistas e editores mal preparados e, em disputa insana para ver que faz o editorial mais cretino. Deu no que deu. Será que aprendemos a lição?

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  • znnalinha disse:

    Tá bom, mas e aí? O que fazer?

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  • Marcos Jefferson da Silva disse:

    Acho que o substantivo “lobo” no caso do Brasil deveria ser empregado no plural. São tantos “lobos”.
    Parece que o hipercorrupto Cabral vai delatar alguns hiperprivilegiados da magistratura e do ministério público.
    Cuidado que a reação deles é violenta.
    Ditado popular: “O lobo perde o pelo, mas não o vício”

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