Parece mas não é

6 de março de 2017 § 17 Comentários

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Artigo para O Estado de S. Paulo de 6/3/2017

Mais um dos nós cegos que amarram a vida brasileira está prestes a ser atado pela trajetória dessa “lei de iniciativa popular” do Ministério Publico que surfou a onda da luta contra a corrupção.

Nem entro no mérito das “10 medidas”. Tudo está errado nessa história a começar pela figura deformada de lei de inciativa popular enfiada de última hora na Constituição de 88. Ferramentas de “democracia semidireta” como esta são uma inovação suíça dos meados do século 19 que foi incorporada à democracia americana na virada para o 20. Pouco menos de 100 anos depois da inauguração do “governo do povo, pelo povo e para o povo”, em 1787, a excessiva “blindagem” dos representantes eleitos arquitetada pelos “Fundadores” tinha se revelado um trágico equívoco. Com mandatos garantidos até à eleição seguinte, como continuam sendo no Brasil, políticos corruptos estavam à vontade para se mancomunar com empresários corruptos e se locupletar impunemente o que reduziu o sistema a uma ditadura de uma minoria articulada para explorar o povo.

Nada disso! A obra da sociedade é que precisava de garantias de estabilidade! E para obtê-la era preciso quebrar a dos representantes eleitos que a comprometia sem no entanto enfraquecer o “governo de representação”. As leis de iniciativa popular foram o primeiro instrumento da reforma permanente que começou ali e prossegue ininterrupta até hoje. Foi com elas que se instituiu, em etapas sucessivas, os complementos do “referendo” das leis dos legislativos e do “recall” dos mandatos dos representantes que inclui os de todos os funcionários que prestam serviços diretos ao público e, para isso mesmo, são eleitos por ele e não nomeados por políticos.

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O pressuposto dessas três ferramentas é, no entanto, o estrito respeito ao princípio federalista. Uma organização democrática – a prerrogativa de decidir, entre iguais, quem vai fazer o quê por ordem de quem – era um imperativo de sobrevivência para comunidades isoladas em territórios hostis longe das autoridades dos países de origem. Foi a mesma que funcionou muito bem por 300 anos no Brasil Colônia das Câmaras Municipais. O federalismo apenas institucionaliza a lógica da necessidade e consagra a sequência histórica desse segundo renascimento da democracia no “Novo Mundo”. Se o povo é a única fonte de legitimação das instituições republicanas, tudo que envolver um só município – educação, segurança, normas de convivência, etc. – deve ser decidido (e bancado) por ele mesmo e só o que envolver mais de um município deve ser decidido (e bancado) pelo poder estadual. Nos EUA independentes essas unidades políticas e geográficas originais só concordaram em aderir a um ente nacional abstrato se os poderes dele ficassem restritos à defesa do território e da moeda nacionais e ao estabelecimento de relações internacionais pois, tudo contra o que se lutava, lá e nas “Vilas Ricas” do Brasil, era um poder centralizado colhendo, à distância, impostos abusivos e mandando despoticamente em gente diferente com necessidades diferentes apenas para sustentar seus privilégios.

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Toda lei “nacional” fora desse escopo restrito é, portanto, intrinsecamente antidemocrática. Quanto à regra de maioria, ela é a menos ruim porque todas as alternativas são piores. Mas também as maiorias são tanto mais democráticas quanto menores forem os pedaços em que a massa dos eleitores for pulverizada. As ferramentas de “democracia semidireta” só se aplicam aos âmbitos municipal e estadual e num contexto de eleição distrital pura não só por essa razão mas também porque só esse sistema define quem exatamente é representante de quem e permite processos de cobrança e substituição perfeitamente legítimos. Qualquer cidadão pode iniciar uma petição de “recall”, propor uma nova lei ou convocar o “referendo” de uma lei baixada pelo legislativo. Mas é preciso colher entre 5% e 7% (dependendo do município) das assinaturas dos eleitores do funcionário ou representante visado ou do eleitorado afetado pela lei proposta ou desafiada. Conferidas as assinaturas pelo Secretário de Estado municipal ou estadual, função que existe especificamente para supervisionar a legitimação desses processos, fica a petição qualificada para ser submetida a um “sim” ou “não” de todos os eleitores daquele funcionário ou representante numa votação especial, no caso de “recall”, ou mediante a impressão da lei proposta ou desafiada na cédula da próxima eleição majoritária para aprovação ou rejeição de todos os eleitores do estado ou município afetados por ela. Na de novembro passado a média nacional de propostas do gênero nas cédulas nos EUA foi de 62.

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Os legislativos são, portanto, meros “pacientes” desses processos. Não podem alterar o que é decidido de forma tão transparente e inclusiva. O Judiciário pode, em alguns casos, interferir. Mas para desencorajar desvios ha eleições de confirmação (ou não) também dos juízes de cada comarca a cada quatro anos. No âmbito federal ha só processos indiretos de “impeachment” que raríssimamente chegam a ser aplicados pois o sistema vai sendo permanentemente higienizado ao longo do caminho.

Tendo recomendado reiteradamente a “democracia semidireta” adotada com variações em todo o mundo que funciona, chamo a atenção, agora, para as falsificações presentes em todas as ditaduras disfarçadas. Nossa lei torta, aberta apenas à iniciativa de corporações e fechada aos cidadãos comuns, pode, com muito boa vontade, ser considerada como uma brecha num sistema hermético que pode eventualmente ser usada para o bem. Mas dar a um indivíduo no STF o poder de fixar o precedente de que bastam umas tantas assinaturas para substituir 140 milhões de eleitores e impor leis intocáveis a todo o país terá o mesmo efeito do que tentou fazer o PT quando quis substituir o conjunto do eleitorado pelos seus “movimentos sociais” amestrados: será o tiro de misericórdia na esperança de uma democracia no Brasil.

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§ 17 Respostas para Parece mas não é

  • pmc disse:

    Dr. Fernão,
    Parabéns pelo editorial.

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  • Marcio disse:

    Caro Fernão, seus artigos nesse contexto, e em especial o de 08/02/2017, expõem com clareza questões de fundamento das democracias que funcionam. Nossa população nem faz idéia de que isso seja possível. Por que você não lidera um movimento que divulgue esses conceitos?

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  • José Luiz de Sanctis disse:

    Excelente artigo, enquanto isso o povo ainda está de ressaca do carnaval.

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  • Não existe um modelo de Estado positivamente projetado para viabilizar uma verdadeira democracia. Os ditos Estados Modernos constituem adaptações do modelo das Monarquias Absolutista medievais nas quais o povo era apenas gado do rei. Uma verdadeira democracia não cabe o termo povo, mas sim, nação. Aliás, em verdadeira democracia, a nação institui governo para tratar dos seus interesses coletivos e nada mais. No Brasil não temos democracia, temos uma corruptocracia mercantil: periodicamente se realiza uma licitação, coordenada pelo TSE, para saber qual o consórcio de homens inescrupulosos de negócio, que terá o direito de explorar o condomínio Brasil no período seguinte.

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  • Carmen Leibovici disse:

    Se os poderes de Brasília ficassem restritos à defesa do território e da moeda nacionais e ao estabelecimento de relações internacionais,estaria tudo bem,porém Brasília concentra tudo e mais um pouco do que acontece e deixa de acontecer no Brasil.

    Comecei a ouvir ultimamente a Hora do Brasil ,e me chama a atenção que o Brasil todo escuta só sobre Brasília;sobre o que “fazem”os deputados federais,senadores,presidente da república e tribunais superiores de lá.Do resto do Brasil ,nada se sabe.

    Eu fico imaginando o que não ficam fazendo deputados estaduais nas assembleias estaduais e vereadores nas câmaras municipais de mais de 5200 municípios brasileiros.Certamente, fazem absolutamente o que querem e ninguém fica sabendo de nada,muito menos as populações locais.Os senadores federais tratam apenas de dar todo o suporte para que deputados e vereadores ajam assim,pois é disso basicamente que eles ficam falando em Brasília:proteger a si e aos chefes dos outros entes federados.

    Portanto ,você tem toda razão:antes de começarem a soltar leis para mais de 200 milhões de brasileiros lá de cima,precisa começar a organizar a bagunça aqui em baixo.Precisamos começar a ter controle ,primeiro,sobre as câmaras municipais e assembléias estaduais,para depois pensar no Brasil como um todo,o que nem é feito por senadores e deputados federais no momento,de qq modo.
    E o modo de fazer isso é ,certamente,dividindo em distritos o País todo.

    Essa “lei de iniciativa popular”do MP não pode passar .

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  • Carmen Leibovici disse:

    E também está correto o princípio de que os municípios tem de começar a se virar com o dinheiro que têm e pararem de depender dos estados, e os estados têm de se virar com o que têm e pararem de depender da união.
    O que acontece no Brasil em relação ao uso de dinheiro por estados e municípios é coisa de criança retardada,com o perdão da expressão.

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  • Fernando Lencioni disse:

    Sim. Mas esses defeitos estão tão arraigados em nosso país que é quase uma Teresa impossível a sua modificação. A alteração das competências legislativas de cada ente federativo demandaria simplesmente a revogação de todos os artigos da constituição que tratam das competências legislativas e administrativas da União, Estados e Municípios. E embora para nós a troca desse atual sistema pelo descrito em sua matéria seja tão óbvio e necessário como o ar que respiramos vão haver poderosíssimos grupos contra e aí, tudo ficará como está. Infelizmente. Uma constituinte no Brasil dará nova oportunidade para a infecção do sistema com novas maluquices socialistas e novamente voltaríamos onde estamos. Acho que fico com Zander Navarro em seu “Por que somos assim?”: …um país que, de fato, não tem futuro (…) E seguimos entre a inércia e a boçalidade que talvez seja, esta sim, a nossa marca cultural mais distintiva.” Triste, mas acurado diagnóstico de nossa psiquê.

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    • Fernão disse:

      Pois é, Fernando, o caminho é longo e o nosso retrospecto não é exatamente animador. Mas ele começa por esse passo singelo: pelo menos as camadas mais informadas têm de ESTUDAR os caminhos EXISTENTES para que tudo saia da Babel a esmo de sempre e abra-se a possibilidade de tomarmos uma direção; adotarmos um remédio QUE EXISTE em vez do palavrório errático que não nos tem levado a lugar nenhum.
      Se, diante da morte, adotamos sem maiores discussões a penicilina que não inventamos, ha esperança.
      É da velocidade da História que estamos falando e ela é bem mais lenta que o tempo de vida de uma geração. Mas diante da gravidade da doença e do tempo do nosso atraso, vou persistir: eu acredito!

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      • Fernando Lencioni disse:

        Apoio você Fernão. Sabe disso. E sempre estarei à disposição para colaborar no que for possível. Mas, convenhamos. A boçalidade é realmente nossa marca cultural mais peculiar mesmo. Basta olhar ao redor.

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      • Fernão disse:

        isso não é uma coisa “nossa”, fernando. é uma caracteristica do bicho homem. é que aqui o boçal pode ir aos ultimos limites impunemente…

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      • Fernando Lencioni disse:

        Talvez você tenha razão. Desculpe, ando desesperançoso ultimamente. Me perdoe. Justo eu que julgo conhecer tanto a natureza humana. Mas está difícil viver atualmente. Além disso já vivi tantas crises nesse país que fica difícil acreditar que um dia teremos um país para se orgulhar. Sem dizer que passei 15 anos de minha vida dentro de uma câmara municipal e isso só fez piorar meu conceito sobre nossos concidadãos.

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  • Fernando Lencioni disse:

    “Tarefa impossível ” erro do corretor desculpe

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  • Carmen Leibovici disse:

    Essa “lei de iniciativa popular”do MP não pode passar ,só pode passar se for uma lei de iniciativa popular a ser feita por habitantes de distritos,o que ,eu acho,os americanos denominam “comunidades”.

    Portanto,antes de uma iniciativa dessas que o MP pretende,precisa de uma lei para dividir o Brasil em distritos ,para efeito de funcionamento orgânico das diversas comunidades brasileiras,que já existem de fato mas que não conseguem se organizar justamente pela falta de um arcabouço físico e legal que as acolha e ,assim,permita que funcionem como um organismo em busca de suas necessidade próprias.

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  • Carmen Leibovici disse:

    acho que o arcabouço distrital a que me referi anteriormente ,seria mais legal do que físico propriamente.

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  • Carmen Leibovici disse:

    O Brasil precisa ter seu organograma refeito

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  • José Silverio Vasconcelos Miranda disse:

    Qualquer um que se dê ao trabalho de ler sobre a história dos USA, vai
    descobrir que a formação da Grande Potência se deveu a ampla mobilização da sociedade, promovendo a criação de movimentos e associações, sobretudo nos séculos dezenove e princípio do vinte. Um
    exemplo claro, para citar só um, e NRA – National Rifle Association, que
    defende com unhas e dentes o direito de usar armas. Está na Constituição. Aqui no Brasil, com exceção das Câmaras Municipais e
    posturas municipais que existiam desde a colônia, nada mais ocorria.
    Importamos maçonaria, marxismo, positivismo , comunismo e outras
    formas estranhas de associação . Nada que pudesse representar os
    interesses reais da população . Emendas constitucionais feitas em cima
    da perna, não representam a vontade da maioria. Consultas populares
    tal e qual na Suíça e nos USA, não temos e não conhecemos. Aqui o voto é obrigatório e resume-se a eleger políticos sem possibilidade de
    serem cassados pelos eleitores.

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