O ministro está morto. Viva o ministro!

30 de janeiro de 2017 § 16 Comentários

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Artigo para O Estado de S. Paulo de 30/1/2017

Se a morte de Teori Zavaski e o peso crescente do STF põem mais uma vez em evidência a fragilidade da nossa (des)ordem institucional, a conversa de surdos em “looping”, tão igual a si mesma que não faz senão aborrecer e alienar, em que se transformou a discussão pública do dramalhão nacional mata qualquer esperança de melhora.

Ao fim de três anos encalhado o país colhe as provas de que o destino do processo que pode mudar o seu destino não está referido a leis e procedimentos certos e sabidos nem a respeito de delitos tão elementares quanto o assalto recorrente aos bens públicos por agentes do estado e empresários por eles cooptados. Tudo está pendente exclusivamente da maneira como houve por bem tratá-los desta vez, e somente desta vez, o ministro morto em cujas mãos a impertinência de um juiz dissonante da 1a Instância jogou a sorte dos políticos denunciados na Operação Lava Jato. E, sendo assim, tornar a sua sucessão neutra e tranquila como deveria ser se fossemos regidos por instituições e não por pessoas é uma missão impossível, senão por todas as outras razões, porque na verdade ninguém sabe exatamente se e como Teori Zavascki se teria decidido a agir em relação aos seus quase réus. Tudo a esse respeito é “segredo de justiça”, expressão que, já de si, é uma contradição em termos. Havia só vagas indicações sobre o que ele “estaria pensando” em fazer.

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Tudo, portanto, pode mudar se mudar o relator, ainda que não mudem os fatos que ele relata. Sendo o objeto do processo a nata dos brasileiros “especiais”, aqueles que vivem do e para o estado e estão acima da lei, a única “providência” possível, mesmo para as nossas autoridades mais altas e mais bem intencionadas, é procurar alguém que “seja parecido” ao ministro morto em matéria de “pensamento jurídico”, seja o que for que tal expressão queira dizer, o que garante que não existe o menor risco de que nada do que é realmente importante mude para melhor no final dessa história. A hipótese menos ruim é que, com a ajuda da sorte, este incidente não chegue a fazer tudo piorar muito como tantas vezes já aconteceu em episódios semelhantes da História do Brasil.

Nada a estranhar. É essa mesmo a lógica do “sistema corporativista”. Transferir intacta, de sua majestade para os três poderes do novo sistema, a prerrogativa de distribuir a quem lhe interessar pudesse, não mais títulos explícitos de “nobreza”, mas sim “direitos adquiridos” eternos e frequentemente até hereditários, e encarregar o Poder Judiciário de “republicanamente” faze-los valer nos seus tribunais em vez de simplesmente no cadafalso como ocorria antes. Foi esse o artifício com que a elite em torno do imperador exorcizou a revolução democrática que varreu o absolutismo da Europa e castrou a Republica que tentou se insinuar ao Brasil.

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A “Nova Republica”, a partir de 1988, apenas deu a última forma à velha aberração. Desde então a “privilegiatura” saiu do armário e a própria “Constituição da Republica” passou a ser oficialmente o repositório dos seus “direitos adquiridos”, dos mecanismos que automatizam a sua continua expansão e das “pétreas” garantias da sua intocabilidade.

Assim como sua congênere norte-americana, o modelo de onde tiramos a nossa, a suprema corte tem por função avaliar a consonância de todos os atos dos outros dois poderes e mais os das instâncias inferiores do próprio Judiciário com a constituição. O problema é que a constituição americana, com 230 anos, tem sete artigos e 27 emendas, todos definindo exclusivamente quais são os direitos de todos ficando tudo o mais fora da lei, e a brasileira, com 29 anos, tem 250 artigos e 93 emendas, quase todos definindo aquilo que é apenas de alguns em aberta contradição com os Princípios Fundamentais que enuncia no primeiro dos seus nove capítulos, o único que guarda algum parentesco com ideais democráticos autênticos. É um falso problema, portanto, o tão criticado “protagonismo” do STF que um poder Legislativo desmoralizado invoca na sua disputa de poder com o Judiciário e em torno do qual a imprensa e seus “especialistas” de plantão, ingênua e infindavelmente “batem caixa”. Assim como é uma completa perda de tempo qualquer tentativa de cerceá-lo sem tocar na sua causa estrutural pois o “protagonismo” não é da corte, é da constituição, e tudo acabará sempre obrigatoriamente no Supremo se tudo e mais alguma coisa continuar podendo ser enfiado na constituição.

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Tudo, no drama brasileiro, está referido a essa mutilação essencial que fez da nossa tão propalada “democracia” um falso brilhante. Passados 118 anos de distribuição desenfreada desses privilégios cá está o Brasil, como era típico de todo o sistema feudal e pelas mesmíssimas razões, estertorando na miséria enquanto a corte onde tudo o mais anda sempre tão devagar passa lei atrás de lei a favor de si mesma como se vivesse em outro planeta. Em pleno século 21 e com a democracia moderna que foi inventada justamente para acabar com isso comemorando o seu 241º aniversário, não conseguimos superar sequer as angústias e incertezas vividas pelos súditos das monarquias desaparecidas desde o século 19 nas quais a morte do rei impunha a todos o que a sorte decidisse sobre a personalidade do herdeiro do trono, com a diferença de que hoje não temos rei, temos reis.

Não adianta sonhar com a redução da corrupção sem tocar na indemissibildade do servidor público e no condicionamento da duração dos mandatos dos representantes eleitos estritamente à satisfação dos seus representados. Não adianta tentar impedir a manifestação dos efeitos sem tratar de remover as suas causas. Enquanto não nos decidirmos a banir da constituição e da nossa ordem legal como um todo tudo que nelas está em contradição com o principio da igualdade de todos, em direitos e em deveres, perante a lei que define a democracia, continuará sendo ilegal tornar sustentável a economia e inconstitucional fazer justiça ou dar os passos necessários para extinguir a miséria no Brasil.

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§ 16 Respostas para O ministro está morto. Viva o ministro!

  • Renato Pires da Silva Filho disse:

    O Sistema Predador gera “segurança jurídica” para as suas corporações titulares, e insegurança total para o resto infeliz da Nação, que, estagnada há séculos, cresce vegetativa, rodando em torno de si própria, e padecendo dos males que o Sistema lhes despeja em série

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  • Paulo Andrade disse:

    Sua lucidez me assombra, Fernão. Mas eu não enxergo qualquer modo de acabar com as capitanias hereditárias. Aliás, faz quantos anos que o Estadão foi proibido de tocar em assunto dum sinhozinho mesmo? Onde isso anda? Será que a internet tem toda essa força mesmo de unir a patuleia pelo voto “consciente” pra tirar a corja? A reprogramação das urnas não será capaz de neutralizar essa tentativa quixotesca e pueril?

    Quando mataram o embrião de uma assembleia constituinte legítima, nos anos 80, que deveria ser constituido de delegados populares (distritais) e colocaram no lugar o (argh!!!) Congresso Nacional, ou seja, raposa ditando regra pro galinheiro, desacreditei, ou como dizia uma amiga sergipana, dasacorçoei…

    Nunca vi um lampejo de democracia nessa terra de ninguém, e penso que não verei.

    De todo modo, te admiro como, guardadas as devidas proporções, admiro João Batista por clamar no deserto, doutrinando camelos e escorpiões.

    E agradeço, pois essa pregação não é inútil, pois me dá a sensação de não estar sozinho.

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  • Paulo Andrade disse:

    Em tempo: o verdadeiro significado de cláusulas pétreas: são aquelas que se coloca uma pedra em cima e não se fala mais nisso, nem na sua implementação, nem no seu cumprimento. Nada.

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  • Carmen Leibovici disse:

    Quando se faz um contrato particular,já ouvi várias vezes,se deve escrever pouco e o essencial.

    No Brasil vigora a enrolação como princípio.Basta ouvir um político falando:fala,fala,por horas,mas não diz nada;depois que o ouvinte já adormeceu na enrolação,o político então continua em sua objetividade-ai sim ele é objetivo-em direção aos objetivos próprios e corporativos.

    A mesma enrolação está na Constituição.

    Seria interessante que algum jurista ,empenhado na cura deste país,extraísse da Constituição vigente o seu essencial e a transcrevesse em poucos artigos e emendas.
    Com um “documento”assim em mãos, se divulgaria essa ideia,via redes sociais e midia em geral.
    Seria como um exemplo em mãos,pois coisas exemplificadas na prática ficam mais claras.

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  • Saulo Mundim Lenza disse:

    Considerando a lucidez do seu artigo, e, a impossibilidade atual de acabar com as “pétreas”, os indemissíveis e os políticos eternamente reeleitos conforme interesses pessoais, além dos cargos vitalícios, fica a pergunta: como será o futuro da Nação e do nosso povo?

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  • Carmen Leibovici disse:

    O Jurista conhecedor da Constituição faria esse documento sintetizado ,evidentemente,baseando-se no enunciado do primeiro dos nove capítulos dos Princípios Fundamentais, o único que guarda algum parentesco com ideais democráticos autênticos,retirando todas as contradições hoje existentes nessa Carta em relação a esse princípio fundamental.
    Seria simplesmente uma faxina na Constituição e um ajustamento de coerência.
    É simples.

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    • Fernão disse:

      não é difícil limpar a constituição desde que se parta de um principio: tudo nela que não vale para todo mundo tem de ser eliminado. é simples assim

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      • Carmen Leibovici disse:

        Concordo,afinal ,somos todos iguais perante a lei,mas precisa de um constitucionalista(não jurista) para elaborar melhor a coisa.
        Ou,quem sabe,qualquer um de nós ,ao lê-la ,poderia ir observando esses pontos.
        Mas um trabalho focado ,feito de forma integral ,ajudaria bem.

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  • Carmen Leibovici disse:

    Porque se um documento assim não for preparado de antemão,quando chegar a hora de uma constituinte-que acabará chegando-ficaremos como crianças despreparadas nos debatendo com as raposas que terão elaborado outra constituição igualmente enrolada,como é sua especialidade,para enfiar goela abaixo dos brasileiros por mais 30 anos.
    É preciso saber o que se quer, e se preparar com antecedência para tanto,para vencer.

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  • Participo de um grupo de pensadores que se reúne em Brasília toda semana (Segundas Filosóficas) que planejou dedicar 2017 a pensar um projeto para o Brasil. Gostaria de entrar em contato com Fernão por e-mail. Também pensamos que nova constituição seja indispensável.

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    • Paulo Andrade disse:

      Nós nunca tivemos uma constituição legítima, sempre alguma coisa imposta pelo governo de plantão. Aliás, desde o Dão Pedro, ” toma pra ti, gajo, antes que algum abentureiro o faça” (referindo-se aos brasileiros descontentes, que já eram muitos, por isso tantos movimentos de inconfidência etc etc etc. A de 46? Poupem-me! a Cidadã????? Essa cheia de artigos dependentes de normatização (mais de 200!!!!)??? Democracia? Qual?

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  • jeanmorgado disse:

    A casta politica/judiciaria que se instalou no pais após o regime militar e com base na imoral Constituiçao Federal de 88, produzida por eles mesmos para se perpetuarem no poder, está cada vez mais distante do povo, auto-blindada e com poderes absolutamente ditatoriais, com o reforço do 4. Poder= o crime organizado. Seria necessario juntar um grupo grande de todos os segmentos da sociedade para denunciar (apesar da midia 99% controlada pela Orcrim chamada governo) e propor uma nova CF, onde funcionario publico não tivesse privilégio algum alem de todos passarem por concurso e sem ficha criminal.
    Mas isso só será possivel trocando 100% dos congressistas, magistrados e demitindo 90% dos funcionarios publicos, um cancer que tornou o Brasil ingovernalvel.

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  • jcmrizzo disse:

    Como sempre, meu caro Fernão, seu artigo é perfeito! Impecável! Temos que combater o câncer que está nos matando a todos, inclusive as próprias células cancerígenas (todos os servidores públicos).

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    • Paulo Andrade disse:

      Não pode generalizar! Os pés-de-chinelo (barnabés) ganham pouco e sofrem! Professores primários, lixeiros, garis, carteiros, pessoal da saúde. Mas pelo menos alguns deles terão que aprender a sorrir quando nos receberem nos SUS da vida, quando a estabilidade for estirpada EM TODOS OS NÍVEIS. Enquanto isso, seria de bom alvitre instituir cartão de ponto pra quem não usa e foge da repartição depois do almoço, deixando o paletó trabalhando no seu lugar. É tradiçaõ de séculos mas, em tempos de tornozeleiras, de facílima implantação. E nada de polegares de silicone, hein, seus danadinhos?!!!!!

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  • José Silverio Vasconcelos Miranda disse:

    Sempre um primor de coerência . Aliás, coerente com um dos seus últimos artigos ” O Brasil precisa ser consertado por inteiro “. A “Cidadã ”
    é uma falácia . Uma aberração. Um “camelo” construído por um grupo que resolveu consertar um cavalo. Deu nisso !!!

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