Está inaugurada a democracia brasileira

5 de março de 2016 § 14 Comentários

re2Artigo para o Estado de S. Paulo de 5/3/2016

Corria o ano da graça de 1605 e a força do Poder Judiciário inglês onde todo julgamento continuava sendo baseado na forma tradicional como cada queixa ou cada crime sempre fora tratado, estava encurralada pelo rei James, o primeiro da dinastia Stuart. Ele queria para si os mesmos poderes absolutos que os reis da Europa Continental tinham conseguido amealhar justamente acabando com esse modo de fazer justiça que fora comum a toda a Europa, Portugal inclusive.

Por volta de 1300 abre-se esse desvio a partir da Universidade de Bolonha onde foi costurado, sob o disfarce de “um renascimento do direito romano”, o esquema que poria os tribunais a serviço do rei, garantindo seus poderes absolutos.

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A Inglaterra, protegida pela sua condição de ilha, foi exceção. Por essa mesma altura – 1300 – resolveu sistematizar o seu método tradicional. Desde essa época todo julgamento na Inglaterra é minuciosamente documentado em duas versões, um relato dos fatos em discussão e outro, igualmete minucioso, do cumprimento dos ritos que, aos poucos, foram sendo estabelecidos para o processo. Foi constituido um juri de “iguais” das partes em litígio e neutros em relação à queixa? Convocadas testemunhas dos acontecimentos para restabelecer a verdade dos fatos? Elas foram interrogadas pela acusação e pela defesa? As duas versões são aquivadas e, para se requerer do Poder Judiciário uma satisfação, passa a ser obrigatório encontrar o “precedente” do seu caso para reivindicar do sistema “a mesma satisfação que sempre foi dada a casos semelhantes“. É o juri quem diz, ouvidas as testemunhas e reconstuida a verdade dos fatos, “sim“, ou “não“, o caso é exatamente semelhante ao anterior, cabendo então ao juiz passar sentença obrigatóriamente idêntica à do caso precedente. Nenhum espaço para arbítrio. Nenhuma brecha para a corrupção ou a negociação de sentenças diferentes para casos iguais.

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Com o acumulo desses relatos ao longo dos séculos, torna-se necessário criar um índice de resumos tecnicamente perfeitos de acesso a eles, para que os queixosos encontrem, na montanha de precedentes, qual o parecido com o seu, já que esta deve ser a exata formulação de qualquer queixa a ser julgada. A importância dessa função e a precisão exigida desses índices de “writs” é o pilar fundamental do sistema. Por isso só dois autores dos ultimos tres séculos, naquele alvorecer dos anos 1600, são reconhecidos como portas autorizadas de entrada nos tribunais.

Mas então surge a prensa de Guttemberg e o mundo do conhecimento sofre um choque muito parecido com o que a internet está provocando hoje, guardadas as proporções. Passa a ser muito mais fácil e barato editar e publicar livros que ate então, tinham de ser copiados a mão. Na Inglaterra, uma das áreas afetadas por essa “disrrupção” é a desses índices de “writs”. Começam a surgir “vulgatas” acessiveis em qualquer canto nas quais não ha nenhuma garantia de precisão num sistema que ainda não sabia se defender dessa ameaça. A confusão é tanta que a certeza jurídica fica abalada…

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James I aproveita a brecha. Institui a Corte da Chancelaria, “tribunal eclesiástico” apoiado pela Igreja que fornece os “juizes” que nela operam, e esta começa a dar sentenças não mais com base nos fatos ou na tradição mas segundo a parte que o rei quer agradar.

O Judiciário verdadeiro resiste. Tem à frente o juiz supremo Edward Coke. Ele cassa as sentenças das cortes do rei, anula seus decretos na velha Corte de Queixas Comuns (Common Pleas) que toda a Ingaterra aprendera a respeitar. Resiste. Luta. Mas o rei tem, sim, poderes extremos sobre a pessoa de seus suditos. “Traição” é uma acusação que leva diretamente à morte. O jogo é pesado. James espreme, ameaça, persegue. Mas Coke é, ele mesmo, uma instituição. Não é fácil tocá-lo impunemente.

O confronto final é inevitável. O rei chama à sala do trono todos os juízes. O ambiente é de quase pânico. Todos cabisbaixos, a capitulação é iminente. Menos Coke…

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É ele mesmo quem relata:

“…o rei disse que acreditava que a lei estava fundada na razão e que tanto ele quanto outros eram possuidores de razão, assim como os juízes. Ao que eu respondi que sim, Deus tinha concedido a sua majestade excelente ciência e grandes dotes naturais; mas sua majestade não é versado nas leis deste reino da Inglaterra e nas causas concernentes à vida, à herança, aos bens e à fortuna de seus súditos; que essas coisas não devem ser decididas pela razão natural mas pela razão artificial e pelo julgamento da lei cujo conhecimento requer longo estudo e experiência; e que a lei é a ferramenta de ouro e a medida para julgar as causas envolvendo os súditos e para manter sua majestade em paz e segurança.

Com o que o rei se mostrou muito ofendido e disse que era traição um homem afirmar que ele devesse estar submetido à lei. Ao que eu retruquei que sim, o rei não está submetido a homem nenhum, mas está submetido a Deus e à lei”.

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…under god and under the law”, significando, esse “under god”, que nem mesmo sua majestade podia reescrever ou negar os fatos ao seu bel prazer; eles, mais a lei, é que tinham de prevalecer para orientar o oferecimento de justiça ou não poderia haver paz nem segurança jamais.

Estava nascendo a democracia moderna!

Nos tribunais, como prisioneiro na Torre, no Parlamento depois que fecharam-lhe as portas do Judiciário, Edward Coke segue com sua luta para desmontar os poderes arbitrários do rei. Sua obra vai ser coroada pela Petition of Right, elemento basilar do moderno Estado de Direito, aprovada pelo Parlamento em maio de 1628, dando aos representantes do povo inglês e às leis por ele aprovadas os mesmos poderes soberanos que têm até hoje.

411 anos depois ver esta mesma cena se repetir no Brasil ainda me emociona. É longo, muito longo o caminho pela frente, mas foi finalmente plantada a pedra fundamental da democracia brasileira.

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§ 14 Respostas para Está inaugurada a democracia brasileira

  • arioba disse:

    Muito boa a lembrança histórica, MAS NÃO SE PODE ESQUECER QUE QUEM COLOCOU O PIXULECO, ESSE REIZINHO DE MEIA TIGELA, NO TRONO, FORAM OS BANQUEIROS, QUE TAMBÉM COLOCARAM STALIN E HITLER, e olha se não também o barbudo Fidel.
    Informamos porca e malmente.
    arioba.

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  • Ou seja, um juiz brasileiro está tentando começar agora o que um inglês começou a 411 anos atrás. Os brasileiros são tão burros que nem sequer sabem copiar o que outros países fazem de bom, dai o seu eterno atraso.

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  • O importante é iniciar um novo ciclo.
    Estamos atrasado mas as vezes as melhores joias são as que demoram a serem lapidadas. Primeiro surgiu um juiz competente e honesto. Agora vamos criar condições para que seu objetivo seja alcançado.

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  • Graças a Deus eu vi o alvorecer de um novo tempo. Tem muita luta pela frente e, tomara que o nosso país acorde e mude o atual sistema judiciário,inclusive, nas nomeações para as cortes superiores, mas, sem o maldito corporativismo.

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  • Carmen Leibovici disse:

    Muito bom e instrutivo este artigo.

    O nosso Coke não é exatamente o juiz supremo no Brasil mas está se comportando como se fosse.

    Mas ,de fato,Moro veio em boa hora,como uma proteção divina mesmo,pois o Brasil já começava a se tornar uma metáfora ambulante de sua desgraça política:pessoas já estavam começando a nascer com seus cérebros diminuidos e a população passando a temer um mosquito.Ou um pixuleco…

    Mas,feliz e esperançosamente,estamos saindo desta e entrando para uma bem mais gloriosa e promissora realidade.

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  • Fernão,
    Valeu a lição. Que seja lida por quem deve especialmente lá em Brasilia.
    Parabéns

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  • Varlice Ramos disse:

    Belo artigo, Fernão. Parabéns!
    Obrigada por mais uma aula de História.
    Até setembro deste ano ainda saberemos de muita limpeza necessária em todos os níveis deste Brasil.
    Também eu me emocionei ontem.
    Eles não passarão! – como sempre disse.
    Um beijo carinhoso

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  • “Rua e guerra”, segundo o cuecão dep. do Ceará,José Guimarães lider do PT na Câmara. É o que eles ameaçam à proteger o Lula. Que o façam e assim o governo acaba mais cedo.
    Não farão porque além da falta de razão, falta coragem mesmo a cívica que o PT não tem, exceto pra se manter no poder e dele tirar as conhecidas vantagens pecuniárias.
    Interessante que os fanáticos militantes defendem um novo milionário , rentista da corrupção e que nunca trabalhou, enquanto os próprios estão desempregados. Até nisso são contraditórios e fanáticos

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  • #FatorSYN! disse:

    #CambiaBrasi!!!l Que realmente todas as “majestades” de nosso reinado sejam devidamente colocadas em seus devidos lugares: 1. Responderem às necessidades (saúde, segurança, educação, infraestrutura); 2. Saibam que estão sob as mesmas leis daqueles que os “financiam” com seus #impostos; 3. Uma MUDANÇA rasgada de dentro para fora com seus ganhos, pecúlios e outras inacreditáveis “tetas reais”. Pois se foram escolhidos democraticamente, devem receber o mínimo e respeitar ao máximo essa função pública, sejam vereadores, deputados, governadores e presidentes. #1303naRua

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  • Robson disse:

    Caro Vespa, Nao seria legal fazer um desenho daquele momento no filme 300 quando o rei da um chutaço no peito do mensageiro corrupto e o lança num buraco infinito. Aqui seria uma pessoa ( Juiz Moro?) com a famosa toga gritando ” we are BRASIL” com um close num pe imenso enfiado no peito do barbudo e ele com cara de susto se agarra na presidenta que esta segurando algumas cabeças famosas tipo: delcidio, cervero, e sabe Deus mais quantos, puxando-a junto. O que acha? We are BRASIL.

    Enviado do meu iPad

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  • Anauê anauê ! Luliquinha nasceu, Lulaca morreu.

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  • […] Abrir-se ao absurdo requer uma intrincada construção que começa por negar a veracidade daquilo que os olhos vêm e os ouvidos escutam, passa pela subversão da ordem cronológica dos acontecimentos para confundir causas com efeitos e termina, no extremo, pela negação da concretude até daquilo que ocupa lugar no espaço e o tato pode palpar. Qualquer semelhança entre tais expedientes e tudo quanto caracteriza o divórcio do Brasil oficial com o Brasil real hoje não é mera coincidência. A democracia é o triunfo do senso comum (no sentido inglês da expressão), daí o esforço concentrado para desqualificá-lo como pouco sofisticado ou reacionário. Ela começa pela reafirmação das cadeias de causa e efeito que até as formas de vida mais básicas são capazes de discernir e apreender. O restabelecimento da primazia do fato sobre a versão que sua majestade dá dele é o que põe a vontade do rei “under god”, e a afirmação do direito igual para todos de ser e acreditar no que quiser e como quiser até à fronteira inviolável do direito do próximo, é o que põe o rei “under the law” como decretou o juiz Coke no ato de lançamento da pedra fundamental da democracia moderna na Inglaterra de 1605 (veja como foi essa história neste link). […]

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