O fim do feudalismo sem gallantry

27 de janeiro de 2016 § 16 Comentários

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Artigo para O Estado de S. Paulo de 27/1/2016

Não foi por acaso que a democracia nasceu nas Américas. No que ela tem de essencial, trata-se de um arranjo espontâneo entre iguais para a sobrevivência em territórios isolados e em condições adversas.

Como vamos nos organizar para termos o que comer e podermos nos defender neste fim de mundo”?

Era a essa questão muito prática que tratava de responder o Pacto do Mayflower (1620). Era a essa questão muito prática que tratavam de responder, 90 anos antes, os portugueses que instalaram em São Vicente a 1a Câmara Municipal da Terra de Santa Cruz (1530).

CM24Câmara de São Paulo 1628 por J. Washt Rodrigues

Durante 400 anos funcionou como um relógio a “democracia dos analfabetos” daquele Brasil das vilas esparsas, sem comunicação umas com as outras, pequenos mundos isolados onde a presença do governo de fora era rala ou inexistente e onde toda a economia e toda a autoridade política tinham de ser providas pelos próprios moradores. Do povo, pelo povo, para o povo…

Foi 1808 que veio truncar essa bela história. São os filhos do privilégio que vão escrever a história da contrarrevolução no Brasil.

O século 18 aporta na democracia instintiva do Norte a sua metade futuro. Renega formalmente o passado; sacraliza a livre circulação das ideias; elege o merecimento como única fonte de legitimação do poder e do dinheiro; proíbe proibir senão a exceção e o privilégio; trata de armar esse sonho das instituições capazes de materializá-lo e blindá-lo contra e acima das tentações do “lobo do homem”.

CM23S. Vicente por Benedito Calixto

O século 19 provaria que não era ainda o suficiente. O poder político e o poder econômico compram-se favores. A corrupção reconstitui a força do privilégio. Tudo ameaça vir abaixo. É só na virada para o 20 que se consolida a revolução. O remédio, síntese de milênios de servidão, é de uma objetividade cristalina: para que seja mais estável o mundo dos cidadãos, tudo que é necessário é que seja essencialmente instável o mundo dos servidores do “Leviatã“. A legislação antitruste, o “recall“, as leis de iniciativa popular e o poder de veto às leis do legislador armam a mão dos oprimidos; dão ao povo a última palavra; é ele no poder.

A diferença que isso faria é a que grita ao mundo hoje…

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Câmara de S. Vicente

Aqui a história foi outra. O século 18 aporta na democracia instintiva do Sul a sua metade passado. Asila no Brasil o absolutismo moribundo; demoniza a livre circulação das ideias; impõe o rei como única fonte de legitimação do poder e do dinheiro; proíbe tudo menos a exceção; trata de imortalizar o sistema atribuindo-lhe a elasticidade mole da complacência e dotando-o de um labirinto judiciário sem porta de saída que tudo mói em processos sem fim.

O século 19 provaria que não foi o bastante para matar o sonho. O Brasil americano insiste. Infiltrada pelos contrarrevolucionários “positivistas” que sentindo-a inevitável embarcam na mudança para sabotá-la, nasce afinal a Republica, vencida a escravidão. Mas é só um eco; faltam as instituições. Num hiato entre ditaduras Prudente de Morais e Rui Barbosa logram plantar o marco institucional da liberdade de empreender que faz nascer o Brasil moderno. Eterno refém da insegurança jurídica, porém, ele será mantido desde então – as veias sempre oferecidas – no limite da sobrevivência para sustentar o outro.

CM8Câmara Municipal de São Sebastião

O sistema político da República permanece exatamente o mesmo do Império com o Estado herdando as prerrogativas do imperador sobre os súditos. O povo — tanto o analfabeto quanto o que oficialmente “vota” — não participa do jogo. É convocado, de quatro em quatro anos, apenas para sacramentar a sucessão presidencial previamente acertada no circuito fechado dos chefes de partidos agora fazendo as vezes da Corte, e dispensado a seguir.

Na Primeira Republica segue o sistema do Imperador que quando, a seu talante, alternava os partidos na chefia do governo, “derrubava” os titulares de todos os cargos públicos para que fossem redistribuídos pelo novo contemplado (“governabilidade“). A única diferença é que a troca passa a se dar mediante uma “eleição” presidencial de que se conhecia o ganhador meses antes de votações abertamente fraudadas.

CM11Câmara de Dourados, MS, 1936

Depois dos 26 anos da ditadura Vargas, o que muda com a redemocratização, essencialmente, é que não sai mais da folha de pagamento do Estado quem quer que tenha conseguido por um pé lá dentro uma vez. Isso mergulha de vez num processo de entropia um sistema politico que sempre foi divorciado do povo. Cada vez mais explicitamente os novos interesses objetivos criados vão configurando as duas únicas classes sociais com interesses intrinsecamente conflitantes no panorama sociológico brasileiro: a dos que são sustentados pelo Estado, auferem e distribuem direitos especiais vitalícios e frequentemente hereditários que a Constituição de 88 virá a tornar “pétreos“, e a dos que sustentam o Estado e todos esses privilégios. Daí por diante, das prisões à renda per capita e ao resto do IDH, tudo será cada vez mais desigual para os habitantes desses dois brasis.

A chegada ao poder do PT, que se assume desde sempre como o campeão desse Brasil dos direitos especiais, leva o processo da entropia à fusão. Não ha saída com ele desse feudalismo sem “gallantry” dos partidos/quadrilhas hereditárias empenhados na conquista de “nobreza” (dinheiro e direitos especiais) pelo acumpliciamento a que chegamos. A “democracia” sem povo à brasileira, só de ida, esgota-se, com dois séculos de atraso, no seu próprio paroxismo.

CM0Câmara de Paracatu, ex-Arraial do Ouro

É o fim de uma era. A meticulosidade do desastre lulopetista reitera que só existe um jeito de se construir uma nação: o difícil. Exaspera a ideia de voltar para trás mas isso já não é uma escolha. Não ha atalho possível. A História exige que todos os passos do caminho sejam trilhados. O Brasil terá de voltar à sua raíz americana; fazer as revoluções do século 18 e do século 19, ainda que acelerando o filme.

Democracia?

Faça você mesmo. “Recall“, iniciativa popular, referendo, e mãos à obra, pedra por pedra, a partir de onde se vive a vida real, que é o município. Não existe outro jeito.

CM00Câmara de Olinda

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§ 16 Respostas para O fim do feudalismo sem gallantry

  • Achilli Sfizzo Junior disse:

    Excelente …..

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  • mario disse:

    Fernão
    Muito bom!

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  • monipin disse:

    Brilhante reflexão histórica sobre a nossa “democracia”. E viva o “recall”!

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  • São os pontos principais da nossa Monarquia Republicana. Desde 1808 o trabalhador deste país sustenta a Corte. Com Getúlio, quem entrou não sai mais; com a benção de todos os partidos, que garantem o sistema político onde apenas referendamos os candidatos que eles nos impõem. Chamam essa cretinice de eleições.

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    • Ao contrário, Fuchs. Não é Monarquia Republicana, mas República Monárquica. Fosse Monarquia Republicana, salvava-se, não por monarquia, mas por republicana.

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      • fernaslm disse:

        certíssimo!

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      • Passou de Monarquia Absolutista para Republicana porque houve o afastamento da família imperial e o trono passou à ser disputado pelos comensais da Corte. No mais, tiraram as perucas, a indumentária de “nobres” e abandonaram os títulos nobiliárquicos comprados.
        Nós, os otários de sempre, continuamos pagando a festa permanente da Corte, agora dominada pelos analfabetizados do sindicalismo pelego.
        Os 10 à 15 mil inúteis que tiveram que trocar de endereço, Lisboa por Salvador e RJ, quando da “indesejável visita” da turma do Napoleão à Portugal, estão sendo sustentados até hoje, não obstante que esse número agora chega a 5 milhões de pessoas com emprego, mas sem trabalho, todos pendurados em algum cabide público.
        Pagávamos a conta do ócio e festas na Monarquia Absolutista e continuamos pagando na Republicana.
        De Mono-arquia quero a maior distancia possível, ainda mais com a Rainha da Mandioca ocupando o trono. Não defeca nem desocupa.

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  • José Luiz de Sanctis disse:

    Prezado Fernão, excelente texto! Só começando do zero mesmo. O difícil vai ser nos livrarmos das ratazanas viciadas em roubar o erário público, cujo vício é passado de geração a geração.

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  • Saulo Mundim Lenza disse:

    Ótimo texto!
    Começar do zero vai ser muito difícil, mas como sabemos que, não se queimam etapas impunemente, vejo ser possível enterrar o presente e, apostar no futuro, com planejamento, organização e controle.

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  • Mauricio Pazini Brandão disse:

    Fernão
    Muito original o cerne de suas ideias. Parabéns.

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    • fernaslm disse:

      nem tanto, mauricio,

      quem primeiro chamou a atenção para a importància da história da “democracia dos analfabetos” no Brasil foi Jorge Caldeira, entre outros livros no “Julio Mesquita e Seu Tempo”, recem lançado.

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  • Caro Fernão, bela narrativa sobre nossa manca democracia. Só acho que temos de incluir no roteiro final uma “revolta do chá”. Os governantes esgotaram a sua legitimidade e a paciência do cidadão pagador de impostos. Nenhum tostão a mais sem que, antes, cortem os custos de um estado perdulário e nababesco!

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  • Ben disse:

    Artigo interessante. Na realidade os ditos progressistas não passam de reacionários. Seguem a mesma fórmula desastrosa da corte de Dom João VI. Que o diga Dom Lula II que quer virar III sucedendo D. Maria II.

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  • […] O fim do feudalismo sem gallantry […]

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