O outro lado do “outro lado”

18 de abril de 2015 § 73 Comentários

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Artigo para O Estado de S. Paulo de 18/4/2015

O PT apoia sua estratégia de controle hegemônico do Brasil na reafirmação sistemática de mentiras essencialmente porque isso funciona. É uma técnica especialmente desenvolvida, testada e aprovada. O dano colateral do uso dessa arma é virtualmente irreversível, mas o poder é sexy o bastante para contar sempre com quem esteja disposto a matar e morrer por ele.

Na quarta-feira, 15, este jornal publicou extensa reportagem do Guardian sobre o assunto no mínimo angustiante.

Hoje todo mundo já nasce com os recursos de manipulação de imagens nas mãos e vive a maior parte da vida em mundos virtuais, de modo que a primeira coisa de que estamos treinados a desconfiar é daquilo que nossos olhos vêm. Mas não foi sempre assim. A humanidade custou a recuperar-se do advento do registro cinematográfico. A edição de imagens destruiu a última barreira sólida que havia entre o nosso equipamento cognitivo e a realidade exterior. “Eu vi com meus próprios olhos” já foi o argumento que encerrava qualquer controvérsia. Hoje não existem mais certezas. Tudo pode ser nada.

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Os totalitarismos e os genocídios do século 20 não teriam sido possíveis sem as falsas emoções e “realidades” que era possível plantar como reais antes que a humanidade aprendesse a redefinir o valor do que seus olhos viam e seus ouvidos ouviam.

Na ponta contrária, desenvolver essas técnicas em ciências transformou-se numa credencial obrigatória de acesso ao poder e num imperativo de sobrevivência para os Estados nacionais. Enquanto os dois lados tinham objetivos diferentes a atingir, tratava-se de antecipar as reações do adversário algumas jogadas adiante e induzi-lo a erro ou a reações previsíveis por meio de informações falsas.

Mas os tempos ingênuos da “desinformação” ficaram para trás. Agora, na era do poder para nada; na era do poder pelo poder, não se trata mais de convencer, ainda que pela mentira. O que conta é conquistar e manter o poder, seja como for, não “para isto” ou “para aquilo” mas apenas para tê-lo, apenas para desfrutá-lo.

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O Guardian descreve, então, como o celerado Putin, ex-KGB e agora czar de todas as Rússias, retomou a obra de onde a tinham deixado os soviéticos para adaptá-la à nova realidade das armas tão destrutivas que não podem mais ser usadas, em que as tiranias se impõem e se mantêm como se tudo não passasse de uma disputa entre advogados desonestos que se confrontam nos fóruns e tribunais internacionais, na qual o objetivo é manter-se sempre nas intersecções da regra e “destruir a ideia mesmo de prova” capaz de caracterizar uma determinada ação como estando em conflito com alguma delas, num universo em que nada é moralmente superior a nada, não ha mais fatos, só versões, e onde a realidade “pode ser constantemente recriada”.

Como é que se faz isso?

A “Pequena Enciclopédia e Guia de Referências sobre Operações de Informação e Guerra Psicológica”, compilada a partir do momento, em 1999, em que o marechal Igor Sergeev, então ministro da Defesa, admitiu que a Rússia não tinha mais condição de competir militarmente com o Ocidente e era preciso partir para “métodos alternativos” para levar as guerras para a “psicosfera” onde as armas são outras, explica didaticamente o caminho.

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Trata-se menos de métodos de persuasão e mais de influenciar as relações sociaisde desenvolver uma álgebra da consciência As armas de informação funcionam como uma radiação invisível que atua contra alvos que sequer ficam sabendo que estão sendo atingidos e, assim, não acionam seus mecanismos de autodefesa”.

Aproveitando o momento vulnerável da imprensa americana que, no nível historicamente mais baixo de sua credibilidade por ter embarcado na mentira das armas químicas de Saddan Hussein sem checar suficientemente fontes alternativas, tentava redimir-se obrigando-se a dar um “outro lado” a toda e qualquer história que publicasse, Putin sentiu que estava na mão a oportunidade de levar a sua “guerra da psicosfera” para um patamar mais elevado.

Criou então a RT, uma espécie de BBC russa de televisão transmitida para diversos países, a começar pelos próprios Estados Unidos, chefiada por Margarita Simonyan, cujo mantra é “Não existem reportagens objetivas. E se elas não existem, todas as versões são igualmente verdadeiras”. Na velocidade da internet (Putin também paga um exército de blogueiros para inundar a rede de “provas” e “versões” do seu interesse para todo e qualquer fato que surge na imprensa mundial, de modo a tornar impossível apurá-los e desmenti-los a todos), os russos passam a testar a fidelidade dos jornalistas americanos à nova regra. “Especialistas” são convocados a todo momento às bancadas da RT para dar versões estapafúrdias de todo e qualquer acontecimento, que os jornalistas nunca desafiam, apenas reproduzem sob o onipresente título/álibi: “O outro lado”. Assim nascem histórias bizarras que chegam a correr mundo como a de que o Ebola foi criado pela CIA para destruir populações de países pobres; a derrubada do avião da Malaysian Airlines pelos invasores russos da Ucrânia foi um erro dos americanos que pensavam estar atacando o jato particular de Putin, e por aí afora.

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Um mercado tinha sido criado. Bastava aos russos atender a demanda por “outros lados”. “Se a objetividade é mesmo impossível e todas as versões, por mais bizarras que sejam, merecem ser apresentadas numa base de igualdade, então nenhum órgão de imprensa é mais confiável que os outros”, é a conclusão dos auxiliares de Putin.

O projeto evolui, assim, para “uma espécie de sabotagem linguística da infraestrutura da razão: se a mera possibilidade de uma argumentação racional for soterrada num nevoeiro de incertezas, não ha mais espaço para o debate e o público acabará desistindo de saber quem tem razão”, efeito que, notam os estatísticos, “já é mensurável na Europa onde as pesquisas registram um nítido desgaste da identidade coletiva e uma sensação geral de perda de controle”.

Qualquer semelhança com o Brasil do PT não é mera coincidência.

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