Uma noite no Olimpo

13 de maio de 2014 § 6 Comentários

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Essas coisas pegam a gente quando menos se espera.

Ontem, na Sala São Paulo, conduzido por Gioconda Bordon, da Cultura Artística, uma amiga querida, sem nem de leve suspeitar do que viria pela frente, fui subitamente alçado do chão e transportado num tapete voador para um estágio de experiência sensorial que não mais imaginava possível.

Não foi exatamente uma experiência confortável. Foi tenso, foi sublime, foi arrasador.

Eu nunca tinha ouvido a Sinfonia nº 5 de Shostakovich.

Lacuna imperdoável!

Quanta falta ela tem me feito só agora eu sei!

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Eu teria de reescrever tudo que escrevi a vida inteira sobre o século 20, cuja sombra ainda paira sobre o Brasil, para acrescentar a tonalidade exata que ele teve e que só desde ontem me foi dado alcançar.

Tenho sérias dúvidas, aliás, de que o efeito tivesse sido o mesmo se essa experiência me tivesse chegado empacotada de outra maneira.

Mariss Jansons nasceu para interpretar essa obra. Para além de ser um dos dois ou três melhores regentes de orquestra vivos, não conheço a história de sua vida nem sei se já produziu essa mágica antes. O que sei é que fui agarrado de repente, abduzido à minha revelia ao me ver testemunha — pelos olhos, pelos ouvidos, pela pele — daquela conexão direta, orgânica, fácil, límpida e indiscutível que se estabeleceu entre a alma e o corpo de um maestro e cada um de seus músicos, deles com os seus instrumentos e desse todo com uma vasta plateia em que todas essas individualidades vindas de todos os atalhos da geografia, da História e da vida se transformaram, durante uma hora inteira, numa coisa só, suspensa no ar, fremindo e vibrando no limite e em absoluta sintonia.

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Milagre? Chame do que quiser.

Mas para avaliar a dificuldade exata dessa proeza é preciso que se entenda que a Sinfonia nº 5 de Shostakovich é qualquer coisa que se ouve em permanente estado de turbulência sensorial, tal é o modo como ele consegue costurar, sem que se choquem mas mantendo o poder de nos chacoalhar, tantas ambiguidades e incongruências. Sonho e pesadelo, trevas e lirismo, vida e morte, sublimação e brutalidade para exprimir o inexprimível como só a música é capaz de fazer.

A nº 5 é um ato de resistência que deslumbra mas crispa; que se ouve tenso, na ponta dos pés, perturbado; que em sucessão muito rápida transporta, faz levitar e sonhar, e logo se estabaca no chão e enfia-se, soturna, abaixo dele. É uma torrente que percorre sua alma e seu corpo, jogando-os para cima e para baixo, de que você se torna mero paciente, e que nos leva até o limite do cansaço muscular.

Era 1937 e Stalin estava no auge da sua fúria sanguinária. O protetor do maestro dentro do partido acabara de ser fuzilado num porão. Seus amigos, seus parentes estavam mortos ou no Gulag. Sete milhões tinham caído em um ano, sua última obra tinha sido “condenada” e ele próprio estava sob ameaça física direta e declarada.

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Shostakovich cantou a canção do infinito numa capoeira, mas numa capoeira onde espreitava um assassino implacável. E no meio da treva absoluta, do assassínio politico anônimo, do sacrifício sem glória, da aniquilação do heroísmo e da expropriação do próprio sentido do ato de resistência, ele insistiu em resistir e escreveu aqueles compassos.

Para provar que era sublime?

É pouco!

Ao agarrar pelo coração uma audiência de vítimas e de algozes sob o signo da estréia do terrorismo de Estado no mundo, constrange-la a, à sua ordem, vibrar e sentir descontroladamente sem ser capaz sequer de definir o quê, ele recolocou os “donos da História” e os parteiros de “novas humanidades” no seu devido lugar, anulou seus julgamentos, deu um drible na morte e provou-nos a todos que nós é que seguimos sendo sublimes, não direi à revelia do que nos imponham, que é pouco, mas à revelia até do que estejamos dispostos a nos permitir sentir.

Entre o Beethoven que abriu o programa e os meus chakras e o que veio depois, confesso, eu me ia entregando a uma certa melancolia.

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A própria Sala São Paulo é um símbolo de resistência. Primeiro pela arquitetura que está por baixo da que a transformou no que é hoje. Aquele padrão de obra pública considerado ao lado das obras públicas de hoje…

Depois pelo que sobrepuseram a essa arquitetura, convivendo com ela. Eis aí uma coisa que me orgulha como brasileiro e não foi feita por deus…

Lá do passadiço eu percorria uma coisa e a outra; os acabamentos, o pé direito, a grandiosidade, o apuramento estético, a competência técnica … e tudo cercado pela Cracolândia.

O que São Paulo sonhou que seria … no que São Paulo se transformou. Os dois Brasis; os muitos Brasis e as “salas São Paulo” encrustradas entre eles…

Mas soaram os clarins. E Mariss Jansons cuidou de tudo…

Shostakovich arranca-nos de nós mesmos. Chacoalha-nos e enfia-nos goela abaixo a nossa grandeza como espécie.

Não ha o que temer! Haverá sempre moicanos! E eles não passarão!

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