Haverá sempre moicanos

22 de maio de 2013 § 48 Comentários

Nada na vida do “dr. Ruy” foi fácil.

Até aí, nada de mais. Nada na vida de ninguém é fácil.

A diferença estava no modo como ele lidava com essa circunstância.

Seja porque tenha tido de se haver com a dor física mais cedo do que esse aprendizado se impõe à maioria dos mortais, seja porque já nasceu navegando longe da costa, exposto aos ventos e às tempestades do mar sem fim da História sem nunca ter posto os pés em terra muito firme, o fato é que jamais se manifestaram nele nem o medo da instabilidade nem a ânsia das vitórias pequenas que atormentam os que acreditam ter sempre algo de muito importante a perder.

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O “eu” nunca foi sua referência.

Dr. Ruy” foi abençoado com aquilo que a ninguém é dado escolher. Não enxergava o que era (moralmente) pequeno. Não olhava para a vida de dentro de si mesmo; olhava para si mesmo de dentro do vasto todo que é a vida e com a serenidade de quem tem a consciência exata da proporção relativa das coisas.

Seu território era o dos grandes coletivos: “O Mundo”, “A Humanidade”, “O Brasil”.

Dava aos outros mais do que tinha para si. O altruísmo – rebelião anti-determinista contra a lei da selva, construção artificial da inteligência, renuncia à força física, pressuposto da civilização e da ética – nele era natural, quase inconsciente.

julio2d

O lado mais próximo é que lhe era estranho.

Quando instado a fazer por si, então sim perdia a naturalidade, mostrava-se troncho, desajeitado e, sobretudo, aborrecido por ver-se arrastado a obrigação tão desinteressante.

Tinha o gosto pelas lutas que não se pode vencer mas não era assim que se via. Cantava a canção do infinito lá na sua capoeira porque não conhecia outra.

Pouco lhe interessava se fosse num bote ou num navio, o importante era estar no mar enfrentando as ondas, cheirando o vento, imaginando o que é que nadava lá embaixo. Navegando. Levando a bandeira adiante.

Só se voltava para dentro de si transportado.

Dr Ruy e filhos no jornal0002

O gesto de gallantry real ou imaginado, um verso, um personagem, a estrofe de um samba. Os abandonos românticos da boemia, sua segunda natureza. Eram essas as frestas para dentro que se permitia entreabrir … para seduzir, para comover, para encantar.

Enterrava na força as suas fraquezas sem premeditação nem heroísmo; naturalmente, porque foi nessa ordem que a vida lhe ensinou as coisas: primeiro a enfrentar a dor, depois a organizar o pensamento.

Amou seus pais. Amou sua mulher. Amou seus filhos e seus netos.

Amou o Brasil e amou sua profissão.

Foi amado por todos eles. Não perdeu a ternura jamais.

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Agora, na partida, volto-me para o poente para reeditar Chingachcook:

Oh Grande Espírito! Oh Grande Criador da Vida!

Um guerreiro está indo para os seus braços rápido e direto como uma flecha atirada em direção ao sol.

Ele é Ruy, meu pai, meu amigo.

Dê-lhe as boas vindas e conduza-o até o lugar que lhe está reservado no conselho dos grandes homens.

Tranquiliza-o!

Sem ele torna-se muito mais árida a solidão desta travessia. Mas nós seguimos demandando o mar. A bandeira será sempre levada adiante, qualquer que seja o barco.

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§ 48 Respostas para Haverá sempre moicanos

  • Mariana Rondon disse:

    Lindissimo texto! Que vida bem vivida essa de quem ao partir , se transforma em inspiraçao pra quem fica! Que desse momento dificil vc possa extrair algum aprendizado e ganhar forças para fazer da tua vida tambem um grande exemplo!
    Um abraço com carinho,
    Mariana

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  • Ari disse:

    Fernão,
    outro dia estalou um raio aqui, bem perto de onde eu estava. Ele faz um barulho de coisa se quebrando, antes de explodir. As forças naturais do ambiente inteiro a que chamamos realidade são extremamente mais potentes que a nossa força vital, inconcebíveis até. São de outra escala. Morrer é a abertura da porta de um mistério impensável, de um reino onde a consciência vê absolutamente tudo, em mínimos detalhes, mas em tremenda velocidade, porque impelida, ou tragada, por uma força tamanha que não há possibilidade de se lhe opor resistência. Dou testemunho disso, por ter estado naquele umbral. Já no lado de cá da vida as experiências costumam ser menos… assim, finais, totalmente apaixonantes… Ou não!, porque a vida é única, etapa com prazo para acabar, experiência irrepetível que amamos até o último alento.
    Um abraço

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  • Alberto Mattos de Faria disse:

    Belíssimo texto Fernão !!! Na parte que toca o mar, tive o prazer de pescar algumas vezes com Dr. Ruy; Dr. Ruy para os outros, porque para nós pescadores ele era o grande pescador Ruy, pessoa simples, adorável e alegre, um baita companheiro !!!
    Vai deixar saudades !!!

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  • Leda Vianna disse:

    Lindo texto, Fernão. Só uma vida e uma pessoa linda pode ter inspirado estas palavras.
    Que privilégio você teve de conviver com alguém assim!

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  • Cecilia Thompson disse:

    Meu querido Príncipe moicano, que assume a descendência:   Que bom que vc postou no Vespeiro também – eu já tinha copiado/colado do jornal e mandado para alguns países – Hamlet e Heloiza, nos States, Canadá, Suiça, Paris, Itália – enfim: amigos longes e pertos. O texto é lindo, lindo e triste. Tento fazer coisas, ler, ver TV – e de minuto em minuto me volta o pensamento, parece tão incrivel, tão injustificado.    À saída do Consolação – não tinha mais ninguém e tinham arrumado dezenas de coroas e flores, tb botei as minhas, com um bilhetinho manuscrito – visitei logo atrás da capela, na rua 10, o jazigo da “Família Braga Thompson” – meus bisavós, minha avó e meu avô, e minha segunda avó, madrasta do meu pai. A sepultura estava limpa, cuidada, mas parecia tão vazia. Nem conheci a avó Flotilde, filha do Conselheiro Municipal Antonio Vieira Braga, mantenedor do Mosteiro de São Bento; apenas a vovó Ana, segunda mulher do vovô Eurico Thompson (Braga era a vovó Flotilde, que perdi também ainda criança).   E voltou tudo, a saudade dos avós, dos meus pais, a saudade que vou sentir de Dr. Ruy todos os dias da minha vida.    Fernão, na sala dele no jornal – acho que ainda deve estar lá – tem um livro infantil editado em Paris mas impresso em português, ortografia antiga, claro, final do século 19 por aí; é As Aventuras de João Paulo Choppard, que foi da infância de meu pai e que dei de presente ao seu há muito tempo. Um livro velho,  encadernado em azul, com título e escritos todos em dourado – queria muito que ficasse com você.    Alice, um pouco orfã também.      

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  • Luiz Barros disse:

    Fernão:
    espíritos altivos como o de seu pai nos conferem a força para que cada qual de nós, mesmo em ponto pequeno ou até minúsculo, estejamos a postos aos chamamentos do verbo e das náuticas incursões de velas ao vento quando ondas bravias exigem a perícia de bons marujos.
    Meus melhores sentimentos a você, seus irmãos e família.
    Luiz Barros.

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  • walter disse:

    Fernão ,
    jornal vivo provoca lagrimas, foi o aconteceu ontem ao ler a pag 2. Minha incondicional admiração pela familia.
    Walter Fontana

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  • isabel disse:

    maravilhoso texto ,palavras vindas do coração da razão e da saudade .

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  • Ronaldo disse:

    Fernão, texto maravilhoso. Já o li algumas vezes e a cada vez me emocionei mais. O exemplo de vida do Dr. Ruy é o desafio legado. Abraços.

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  • Dênis disse:

    Fernão,

    Que a vida me reserve no futuro o papel de pai, para que meu filho ou filha preste-me uma homenagem talvez não tão grandiosa como esta, mas com a qual não me envergonho de ter chorado.

    A propósito, é sabido que os subordinados dizem muito sobre seus líderes. Trabalhar em um projeto de Custos com o Sr. Esny Ledesma pôde me dar uma noção de como a ética e a competência são importantes dentro do Grupo Estado.

    Meus sentimentos e força sempre.

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  • flm disse:

    obrigado, denis

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  • Vânia Lodi Fragoso Pires disse:

    Lindo texto! Apenas quero deixar meu carinho e admiração pela pessoa tão querida que tive o prazer de conhecer.
    Meus sentimentos.

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  • Magda David disse:

    Fernão, obrigada por este texto lindíssimo e emocionante. Fica a esperança que você esteja certo, que haverá sempre moicanos.

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  • Fernando Oliveira Martins Filho disse:

    Fernao querido, maravilhoso o texto ….. Pai maravilhoso !
    Com certeza vc ganhou um Anjo da Guarda maravilhoso tambem….
    Meus sentimentos
    Bjs Bola

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  • António Posser de Andrade disse:

    Muito bonito Fernão e porventura mais bonito foi ainda o vosso relacionamento pois só assim é possivel alguem conseguir escrever com essa carga de sentimento.
    Grande abraço amigo e vê se ganhas vontade para vir visitar aqui os teus amigos na “terrinha”.

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  • Ruth disse:

    Fernão Lara Mesquita, quando meu pai se foi, pensei algo parecido, ele também jornalista e o cara da boa luta, um homem de muitas tribos. Passados anos de sua morte, ele sempre me surpreende, ressurge, vivo e firme em seus valores, nas lutas democráticas, em história de salvação, nos momentos mais inesperados e quando estou mais frágil precisando de um apoio, virou um herói fantástico. Tenho certeza de que será assim com você, sempre acompanhado e protegido. Lamento a perda de um brasileiro deste porte, sinto que pessoas como ele deveriam ser congeladas para que a ciência as restaurasse e virassem algo como uma Liga dos Sábios Amorosos….

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  • Varlice disse:

    Fernão
    Diferentemente de todos os que me antecederam nos comentários, não sabia que Ruy Mesquita era seu pai. Imaginava parentesco, mas ignorava qual seria.
    Não poderei aqui relembrar situações cuja convivência com ele teriam me marcado – e seguro teriam.
    O que tenho a oferecer é um abraço sincero, solidário e invejoso a você que teve a felicidade de conviver e trabalhar com seu pai até a idade adulta.
    E um beijo também.

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  • Cassia Maria Amajones disse:

    Fernão impossível não se emocionar com esse texto!!! Ter este homem como pai foi um verdadeiro presente!!! Parabéns meu amigo !!! Que vc tenha muita força pra continuar sua travessia! Um grande abraço ! Cassia

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  • Fernão,
    Parafraseando Camões:
    – Alma minha, gentil, que te partiste . . .
    e viva eu cá na terra, sempre triste.
    Essa tristeza só acaba quando vocês, filhos, resgatarem o pai e sua grandeza, cada dia. Vocês são Dr. Ruy vivo, hoje.
    A palavra é Deus, sua palavra honra Deus e honra Dr. Ruy, que morreu com honra, utopia oriental.
    Consternado,
    Jayme de Ulhôa Cintra e Toledo Piza e Família.

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  • jean bize disse:

    lindo, é tudo muito triste, em meio a tanta mediocridade, mais uma pessoa de grandeza se vai, eu posso falar, porque conheci sua grandeza, marcou minha vida, me sinto abençoado por isto, que privilégio, obrigado, mais uma vez, dr. ruy,

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  • flm disse:

    obrigado, jean. grande abraço

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  • stella ferraz de camargo disse:

    Fernao querido,que lindas palavras,filho de peixe, peixe é!
    um beijo enorme nessa familia querida e especial.
    stella

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  • Priscilla Garcia disse:

    Meus sentimentos!
    A perda de um pai é sempre dolorida, mais ainda quando ele é um Grande Homem. O meu também era. Faleceu há 2 anos. Sinto falta das nossas conversas.
    Linda a sua homenagem!
    Força!
    Priscilla Garcia (irmã de Cynthia)

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  • Marcelo José Acselbant Rodrigues disse:

    Fernão – Sem comentários. Me emocinei demais. Toda a minha juventude passada ao lado de vocês enquanto lia, voltava em doces lembranças. Tenha certeza que o espirito e grande criador da vida acolheu o guerreiro jubilosamente – o DR. RYU – Abriu suas asas e voou ao seu encontro. Um grande abraço.

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  • flm disse:

    com certeza, meu caro marcelo.
    grande abraço, saudades…

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  • […] É caminho demais para voltar atras. Minha casaca não vira, é pele, e sigo cantando, aqui da minha capoeira, que haverá sempre moicanos… […]

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