O individual, o coletivo, o PT e a democracia
14 de janeiro de 2010 § 5 Comentários
Quando, lá na virada do século XVII para o XVIII, a Revolução Americana afirma que o indivíduo é a base de onde tudo parte e à qual tudo deve se referir numa democracia ela está apresentando a síntese de 2.500 anos de evolução da idéia de governo de participação popular.
E isso por uma razão muito prática, aprendida da História pelo caminho mais duro: o indivíduo é a única entidade cuja vontade pode, de fato, ser conferida.
Apoiar todo o sistema no indivíduo significa, portanto, obrigar a essa conferência cada vez que uma mudança importante tem de ser feita.
Já quando se apóia todo o sistema na abstração que é a “vontade coletiva”, alguém se arroga o direito de falar por ela.
Historicamente, essa evolução tem um nexo perfeito com a reforma protestante. Muito mais evidente, aliás, que aquele que Max Weber foi buscar com toda a sua erudição. Pois o movimento protestante, que decorre indiretamente da invenção da prensa de Guttemberg, foi, antes de tudo, uma revolução educacional. Lutero veio a campo para denunciar a um mundo onde, até então, os livros tinham sido um privilégio inacessível, que o que os padres diziam – que o que o próprio papa dizia – não era o que estava escrito na bíblia. Sua única reivindicação para os príncipes alemães, ainda em pleno século XVI, foi que instituíssem a educação gratuita e obrigatória para todos, para que cada um pudesse ir direto à fonte em vez de seguir ouvindo a tapeação de terceiros.
Os primeiros protestantes da Inglaterra esgueiravam-se à noite, de choupana em choupana, para ler a bíblia à luz de velas para as famílias de miseráveis analfabetos e pregar a sua mensagem subversiva: “aprendam a ler porque a libertação está em cada um poder procurar a verdade por si mesmo”.
É isto que está na raiz da idéia do “um homem, um voto” nos governos do povo, pelo povo e para o povo. É daí que vem a obrigação de criar uma identificação visível entre cada representante e seus representados (coisa que o sistema eleitoral brasileiro ainda não proporciona). É a isso que responde a obrigatoriedade da participação de todos os eleitores, em votações secretas e fiscalizadas, na hora de tomar decisões.
Só a vontade individual é accountable (a palavra chave das democracias anglo-saxônicas que não tem sequer tradução exata em português; denota algo como “conferível”). Por isso os mandões, os iluminados, os líderes carismáticos, os exploradores da miséria e os ditadores em geral, detestam-na.
Já a chamada “vontade coletiva” é uma abstração que pode facilmente ser falsificada. Qualquer um pode se declarar o porta-voz dela. E por isso todo ditador a cultua.
Daí o meticuloso trabalho dos inimigos da democracia para confundir a idéia límpida da função da vontade individual nas democracias com a noção de individualismo torcida para a sua pior conotação – a de egoísmo e indiferença pelo outro – por oposição ao coletivo apresentado com a conotação rósea de generosidade, de solidariedade e de altruísmo.
O truque é velho como a humanidade…
E, no entanto, é por esse caminho torto, manchado pelo sangue e pelas misérias da história recente da humanidade, que insiste em caminhar este “Plano Nacional de Direitos Humanos” do PT.
Para criar atalhos e passar ao largo dos poderes independentes, eliminar os contrapesos e a fiscalização do Poder Executivo, erigir os réus em juízes dos seus próprios crimes, criar comitês de iluminados para ditar “A Verdade” (Pravda) e cassar a palavra de quem ousar contestá-la, para determinar que tipo de ciência pode ser pesquisada e que tipo de arte pode ser produzida, o PT dispensa a manifestação de todos os eleitores. Não se digna a consultar sequer os seus representantes eleitos.
Para a construção desse paraíso dos “direitos humanos”, que muda a essência do regime pelo qual todos nós lutamos, não serve a ferramenta de legitimação democrática de processos que a humanidade aperfeiçoou em dois milênios e meio de luta contra a servidão no percurso de Atenas até aqui.
É preciso inventar um sistema “novo”.
Mais que isso. No Programa Nacional dos Direitos Humanos onde o PT desenha esse país do futuro, reinventa-se o nosso passado; cria-se uma nova História do Brasil da qual você não participou mas cujos anônimos protagonistas falam em seu nome.
Vale a pena checar com seus próprios olhos (aqui: http://www.mj.gov.br/sedh/pndh3/index.html) o modo como o redator do projeto que toda a cúpula do PT subscreve como a peça de orientação do futuro dos 180 milhões de brasileiros descreve aquilo que seria a gênese “espontânea” dessa rede de movimentos sociais, fruto de “iniciativas populares primeiro nos bairros … atomizadas, buscando conquistas parciais … que ao longo dos anos foram se caracterizando como movimentos sociais organizados” e como eles, juntamente com os sindicatos “se tornaram os principais promotores da mudança e da ruptura política em diversas épocas e contextos históricos … afirmando-se como pilares da democracia durante a etapa da formulação da Constituição Cidadã”, articulando-se “em redes de abrangência nacional” daí por diante, “desempenhando, nos anos 90, papel fundamental na resistência a todas as ofensivas orientadas pelo neoliberalismo no sentido da flexibilização dos direitos sociais, privatizações, dogmatismo do mercado e enfraquecimento do Estado” … passando a desempenhar, desse período em diante, “funções de gestores públicos” até que, “com as eleições de 2002 … trouxessem para dentro do mandato presidencial reivindicações históricas acumuladas, passando a influenciar diretamente a atuação do governo vivendo de perto as suas contradições internas”.
Que Diretas Já, que nada!
Teotônio Vilela, Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, a resistência da imprensa, as multidões nas ruas, nada disso existiu. Até mesmo Lula está a beira de ser resgatado “de suas contradições” por esses heróis anônimos que ninguem elegeu, cuja chancela o PT considera bastante para legitimar o plano de vôo pelo qual pretende levar o Brasil da democracia para o autoritarismo.
Lendo esse documento delirante ficamos sabendo que há duas histórias do Brasil: a que todos nós conhecemos e eles solenemente ignoram, e a que os autores deste programa começam a nos revelar…
No prefácio do calhamaço, que ele assina, o ministro Vannuchi teve, entretanto, o descuido de ser específico na descrição desse processo de “ampla legitimação democrática” do programa de governo que promete mudar tudo neste país, daqui por diante. Passo a citá-lo:
“Realizaram-se 137 encontros prévios às etapas estaduais e distrital, denominadas Conferências Livres, Regionais, Territoriais, Municipais ou Pré-Conferências. Participaram ativamente do processo cerca de 14 mil pessoas, reunindo membros dos poderes públicos e representantes dos movimentos de mulheres, defensores dos direitos de crianças e adolescentes, pessoas com deficiência, negros e quilombolas, militantes da diversidade sexual, pessoas idosas, ambientalistas, sem-terra, sem-teto, indígenas, comunidades de terreiro, ciganos, populações ribeirinhas, entre outros. A iniciativa, compartilhada entre a sociedade civil e poderes republicanos, mostrou-se capaz de gerar as bases para a formulação de uma Política Nacional de Direitos Humanos como verdadeira política de Estado”.
A isto se resume o Brasil do PT.
E ele basta para definir que, de agora em diante, o país inteiro passará a navegar em outra direção, diferente dessa bobagem que a humanidade depurou durante 2.500 anos chamada Democracia onde os representantes têm de ser eleitos por todos os eleitores, discutir e votar uma decisão por vez e, ainda assim, submeter essas decisões ao crivo do Judiciário.
Para o PT, toda essa complicação aborrecida – “burguesa” – pode ser substituída por uma consulta prática aos seus 14 mil convidados especiais, cabendo aos outros 180 milhões de brasileiros ouvir e obedecer.
É isto que, levado à sua mesa pela Casa Civil da “competente” Dilma Roussef, o presidente da Republica assinou como o seu projeto para o futuro do Brasil.
Excelente!
Seja agora nesta grave ocasião, seja em qualquer outro momento, a ameaça do esquerdismo deve ser denunciada a sempre e com veemência.
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Fernão, gostaria de saber o seu e-mail
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vespeiro.com, how do you do it?
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[…] O que está em plena prática não é outra coisa senão o governo da “rede de movimentos sociais organizados espontaneamente gerada” para demandar o que Lula anunciou que estava ofertando ao mercado (os bilhões de reais que saem todos os anos dos cofres dos ministérios para as ONGs de boa fachada montadas pelos militantes dos partidos donos desses ministérios) que, junto com os sindicatos (também paridos e criados com dinheiro público), seriam “os principais agentes das mudanças“, de que falava, ipsis literis, o Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH) que todos os ministros e membros graduados do PT assinaram na virada de 2009 para 2010 e depois tiveram de “repudiar” diante do escândalo que ele gerou (confira os termos desse plano de governo aqui). […]
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[…] Veja a matéria completa do Vespeiro de janeiro de 2010 de onde saiu esse trecho neste link […]
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